DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/12/2019

Viragem



Os ventos sopraram vírus há tempos instalados sob várias casacas de vestais supostamente acima de quaisquer suspeitas; vendavais carregados de pesadas bombas de efeito remoto, espraiaram-se sobre praias, morros, favelas, lares e bares de um certo país tropical. Todos viram, e veem suas veias entupidas pulsando, a ponto de explodir como uma bomba relógio; mas suas mentes estão programadas para não reagir. É o efeito "deixa a vida me levar, o negócio é deixar rolar". E rolam como pedras em cascata, como Sísifo em seu círculo vicioso, sem olhar para os lados. Entra ano, sai ano, e a cantiga da perua é sempre a mesma:de pior a pior. Papéis em branco, cheques sem fundos, mentiras que se transformam em verdades, e a vida continua como se fosse uma folha que cai de uma árvore cada dia mais seca. Vira-se mais uma página em branco. Ventos indeterminados, inesperados, poderão soprar estrelas
de metais; chuvas de pedras gestarão homens de pedras sobre pedras de homens, contra o Homem.
É a viragem do ANO!

26/12/2019

RECEITA DE ANO NOVO




Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

19/12/2019

Das palavras



Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto em comparação, são pouquíssimas aquelas sobre cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se algum dia nos perguntássemos seriamente se as
temos. Assim afirmamos e negamos, assim convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos e concluímos, discorrendo
impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só temos ideias muito vagas, e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos enquanto tacteamos o caminho no meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos vamos entendendo, e às vezes,
até, encontrando.

José Saramago em O homem duplicado

14/12/2019

Embriaguem-se!



É preciso estar sempre embriagado. Tudo se resume a isso: é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do tempo que esmaga seus ombros e os curva para o chão, é preciso que se embriaguem sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia, de virtude, como quiserem. Mas embriaguem-se.
E, se em algum momento, na escadaria de um palácio, na grama verde de uma vala, na solidão morna de seu quarto, vocês acordarem, já tendo a embriaguez diminuído ou passado, perguntem ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que escapa, a tudo que geme, a tudo que roda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntem que horas são, e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de se embriagar! Para não serem escravos martirizados do tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude, como quiserem.."

Charles Baudelaire em Pequenos poemas em prosa - O spleen de Paris.

10/12/2019

Pelas beiradas



Feito formigas que sobem pelas beiradas de um pires em busca de açúcar assim temos vivido; sonhando dentro de um sonho pra evitar pesadelos; cantando com uma voz rouca e desafinada uma canção de meio dia, meio mundo vazio e falto.
Pétala, pata, porta, pé de muro, lâmina, lágrimas dias e noites, goteiras, clarões, breus, e uma rosa verde que flutua sobre um mar de tormentas, e um barco à deriva. Ao longe uma aurora desvairada, cheia de sombras, vultos encobertos num cais sem ancoradouro; praias invadidas por escura(e obscura)
lama oleosa; montanhas destruídas por mineradoras;
florestas destruídas por motosserras de madeireiros;
índios assassinados por grileiros.
Deus dá, ou nega?
Como é que vai ficar essa josta?

07/12/2019

O sobrevivente




Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingir um nível razoável de cultura. Mas até lá,
felizmente, estarei morto.
Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez ais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema).

Carlos Drummond de Andrade em Alguma poesia.

02/12/2019

Do reflexo de teu espelho





Soneto 77

Teu espelho te mostrará como a beleza se extingue,
teu relógio, como os preciosos minutos se gastam;
as folhas ausentes ficarão marcadas em tua mente,
e a lição que deverás aprender deste livro.
As rugas que teu fiel espelho te mostrará,
cavarão sulcos em tua lembrança;
tu, pela sombra dos ponteiros do relógio, verás
o andar sub-reptício do tempo até a eternidade.
Vê o que tua memória não pode suportar,
aceitando esses desperdícios, e encontrarás
essas crianças alimentadas, livres de tua mente,
para conhecer de outro modo, teu pensamento.
Esses fatos, sempre que os leres,
ser-te-ão proveitosos, muito enriquecerão teu livro.

William Shakespeare Stratford, Inglaterra -
1564-1616.