DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

22/04/2019

Mensagem do Sol


Janelas, abri-vos!
Portas, abri-vos!
Deixai-me entrar, deixai-me entrar,
deixai-me por os pés na vossa casa humilde.

Entro com ramos de flores douradas,
entro com a fragrância da floresta,
entro com a luz e o calor,
entro com o corpo molhado de orvalho.

Levantai-vos depressa!
Erguei as cabeças da almofada,
abri os olhos estremunhados,
para presenciar a minha chegada.

Abri-me o coração, casa humilde,
construída de tábuas.
Abri-me as janelas há muito fechadas,
deixai-me encher teu coração de flores,
fragrâncias, luz, calor e orvalho.

***
Muro

um muro, como uma lâmina
a cortar uma cidade em metades
uma a leste
uma a oeste

qual a altura do muro?
tem qual espessura?
tem qual alcance?
e alto, e espesso e longo
e não é mais alto, mais espesso, mais longo
do que a grande muralha

mas também uma ruína da história
trauma das etnias
ninguém gosta deste tipo de muro
três metros de altura são como nada
cinquenta centímetros de espessura são como nada
quarenta quilômetros de alcance são como nada
 mil vezes mais alta
mil vezes mais espessa
mil vezes mais longa
e ainda como poderia parar
as nuvens celestiais, o vento, a chuva,
os raios, o sol?
e ainda como poderia impedir
as asas das aves e o canto do rouxinol?

e ainda como poderia impedir
o fluxo das águas e dos ares?
e ainda como poderia impedir milhões de pessoas
com pensamentos ainda mais livres que o vento?
com uma vontade ainda mais profunda que a terra?
com as aspirações mais duráveis que o tempo?

Ai Qing (1910-1996), pseudônimo de Jiang Zhenghan, nasceu na província de Zhijiang, sudeste da China. Poeta, editor de periódicos e diretor do departamento de literatura da Universidade de Yucai de Chongqing.

16/04/2019

A lei agradecida




O bom negociante do lugar notava sempre com tristeza que a estrada que lhe passava nas portas
estava cheia da buracos, inconveniente fácil de remediar.
Pediu a um amigo que se dava nos jornais o favor de
chamar a atenção das autoridades competentes para
fato tão escandaloso. Os jornais falaram, mas as tais autoridades competentes, muito interessadas em dotar Botafogo de mais um "refúgio", não se incomodaram com os buracos da Estrada Real.
Entretanto, essa velha azinhaga presta imensos serviços. Por ela se faz um trânsito intenso da lenha, do carvão, dos produtos hortícolas que os arredores do Rio produzem.
O bom negociante olhava os buracos e tinha pena. Arranjou um abaixo-assinado e levou-o às autoridades competentes. Elas não se moveram, e ele continuou a considerar com tristeza o lamentável estado da via pública. Foi ainda ao amigo e pediu que
reclamasse pelos jornais. Não houve nada.
Certo dia, o seu aborrecimento foi imenso ao ver que
um dos burros de uma carroça de carvão quebrara as
pernas e ficara a arquejar na margem da estrada, a espera de ser abatido. Pensou em fazer gratuitamente os reparos; e teve até aquela ideia luminosamente feudal dos legisladores de São Paulo:
achou de boa ideia que o governo tornasse obrigatório, em certos dias da semana, para os habitantes de certas localidades, prestarem gratuitamente determinados serviços públicos. Era a corvée medieval, mas ele não sabia disso. Pôs mãos à obra e alugou trabalhadores, carroças, barro, etc.
Aplainou aqui, aterrou ali, e o trecho que lhe passava
às portas ia ficando uma lindeza. Quando ia acabando o serviço, apareceu uma "autoridade competente" e intimou o benfeitor:
- Está multado.
- Por quê?
- Não pode escavar a via pública.
E o bom negociante pagou a multa sem tugir nem mugir, travando conhecimento com a gratidão da lei.

Lima Barreto - Revista Careta de 14.08.1915

Obs: Os tempos mudaram, mas a história continua a
mesma!

06/04/2019

Sonambulismo II




Um quarto dentro de outro quarto: quartos, e mais quartos. Quartel, quartéis. Esquartejamentos, enforcamentos um dia após outros dias. Fragmentos quebras divisões. Desunião desmoronamento turvação...
A noite fugirá a contragosto para dar lugar ao sol que
surgirá para um novo dia!

02/04/2019

As coisas



achava que as coisas dentro dos livros
eram mais verdadeiras do que fora
que as coisas nos livros e as pessoas
estavam no lugar certo e se destoavam
era só para depois retomarem o lugar
exato em que deveriam estar 


Magritte

Dor

a dor preza as cartilagens
os interstícios e vãos
o debrum da alma mais exposto
à noite
o nervo mais lúcido
a veia mais mansa
o mais dúctil segmento
do músculo

Vera Lúcia de Oliveira é uma poetisa que nasceu em Cândido Mota(SP)e vive atualmente na Itália. Em 2005 recebeu prêmio da Academia Brasileira de Letras pelo livro "A chuva nos ruídos". Tem publicados os livros "Entre as junturas dos ossos", "Vou andando sem rumor", entre outros.