DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/01/2020

O artista e a arte da relojoaria




Nunca, com certeza, desde que o mundo é mundo, (estou falando do mundo sensível, tal como nos é dado a cada dia), não, nunca, seja qual for a mitologia na moda, nunca o mundo, nem por um segundo, suspendeu o seu funcionamento misterioso.
E no entanto, nunca no espírito do homem - e precisamente desde que o homem parou de considerar o mundo unicamente como o campo de sua ação, o lugar e a ocasião de seu poder - nunca o
mundo, no espírito do homem, funcionou tão pouco, tão mal.
Ele já não funciona mais a não ser para alguns artistas. Se ele ainda funciona, é graças a eles.
[...] A função do artista é assim bastante clara: ele deve abrir um ateliê e tratar de consertar o mundo, por fragmentos, como ele aparece. Não porque se toma por um mago. Mas por um relojoeiro. Reparador atento da lagosta e do limão, da colmeia ou da compoteira, aí está o artista moderno. Insubstituível em sua função. Seu papel é modesto, como se pode ver. Mas dele não se poderia abrir mão.

Francis Ponge, Monpellier(França) 1899-1988

20/01/2020

Cuide bem do seu bode!




Quantos sóis serão necessários para queimar a realidade que nos cerca? Quantos sapiens ainda surgirão para destruir o planeta terra? Com quantas lâminas pode-se cortar a língua de um povo?
Vivemos à sombra de uma sombra que brinca de "amarelinha" a zombar da nossa capacidade de discernimento entre o falso e o verdadeiro. Cortinas de fumaça são criadas para desviar nosso olhar. "Amarre um bode na sala", "tire o bode da sala", artifícios usados com bastante frequência pelos mandatários do poder diante de problemas sociais, aparentemente sem solução: criam um problema maior para causar mais mal estar e depois o eliminam para que todos fiquem satisfeitos
e se esqueçam do problema anterior, que não foi resolvido. Quem ainda não ouviu falar da figura do bode expiatório? Essa figura remonta à época das primitivas cerimônias religiosas de expiação, quando sacrificava-se um animal no lugar das pessoas pecadoras. Vem daí a sua origem: "cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo..."
Ao longo da história da humanidade surgiram (e ainda surgem)vários bodes expiatórios, como os índios, os negros, os homossexuais, os judeus, os ciganos, os pobres, os imigrantes, as bruxas, os nordestinos brasileiros, etc, etc.
Embora muitas pessoas não saibam disso, todos temos um bode dentro de nós. Ele é o nosso núcleo de resistência, simboliza nosso instinto de sobrevivência. Portanto, cante, brinque, dance, mas não descuide do seu bode, cuide bem dele!

16/01/2020

Distopia




uma pétala
uma porta
uma mesa com
cadeiras vazias

patas ao pé do muro

uma rosa verde
mares tormentosos
barcos à deriva
âncoras despedaçadas
ideário rasgado
farrapos humanos

e a boca calejada
de palavras

pétalas patas
portas pé de muro
lâmina lágrima
a gotejar trovões
e relâmpagos

auroras desvairadas

09/01/2020

João Cabral de Melo Neto





Nasceu em Recife(PE) no dia 9 de janeiro de 1920. Se vivo fosse completaria 100 anos! Um dos poetas mais importantes da literatura brasileira, nos deixou um legado poético preciosíssimo, entre eles O cão sem plumas, Morte e vida Severina(adaptado para a música, o teatro e o cinema), O artista inconfessável
(uma espécie de autobiografia do poeta), entre muitos outros. Faleceu no dia 9 de outubro de 1999.
Em sua homenagem transcrevo aqui um poema seu inédito, A nuvem sobre a batalha e Tecendo a manhã


A nuvem sobre a batalha

Não há nuvem sobre a batalha.
Nas guerras de antes, sim havia.
Hoje na nuvem está a batalha
não a chuva que a ignoraria.
Hoje, ao pensar Joaquim Cardozo
o que me disse lembro ainda,
dia que os jornais noticiaram
a nuvem caída em Hiroshima
"Não há nuvem sobre a batalha.
Minha imagem foi abolida.
Hoje a nuvem leva navalhas
no que foi chuvada ontem-em-dia.
Da guerra em duas dimensões,
em que a vitória era uma colina,
a guerra última foi de dentro:
a nuvem choveu na cozinha".

***

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.


E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Publicado em A educação pela pedra(1966)

06/01/2020

Abre teus olhos




Agência de empregos

Quero meu lugar, um lugar que seja meu,
meu verdadeiro lugar no mundo, minha esfera,
a coisa que a Natureza me destinou a fazer
e que passei a vida inteira procurando em vão.

Nathaniel Hawthorne - Massachusets(EUA), 
1804-1864

***

Atira para o mar as tuas coisas
Abandona os teus pais, muda de nome
Esquece a pátria, parte sem bagagem
Fica mudo e ensurdece
Abre os teus olhos

Se o teu amor não vale tudo isso
então fica onde estás,
gelado e quieto
O amor só sabe ir de mãos vazias
e só vale se for o único projeto

Renata Pallotini, São Paulo, 1931. Dramaturga, ensaísta, poetisa, contista e romancista.

***

Um dos ofícios do homem é fechar e apertar muito os olhos a ver se continua pela noite velha o sonho truncado da noite moça.

Machado de Assis, Rio de Janeiro(1839-1908), em
Memórias póstumas de Brás Cubas