DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/11/2022

De Eugênio de Andrade *

 



Urgentemente


É urgente o Amor.

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos, 

muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,

e a luz impura até doer.

É urgente o Amor.

É urgente permanecer.


***


Frente a frente


Nada podeis contra o amor,

contra a cor da folhagem,

contra a carícia da espuma, 

contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,

a mais vil, isso podeis

- e é tão pouco!


***


É na escura folhagem do sono

que brilha a pele molhada,

a difícil floração da língua.


* O poeta Eugênio de Andrade nasceu em Fundão(Portugal), em 1923 e faleceu em 2005. 

22/11/2022

A flor e a náusea

 



Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me. 

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?


Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita ou recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres, mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Por fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em A rosa do povo

09/11/2022

Porque...




Porque era noite e muitos não sabiam que as nuvens se acumulam assim como se dispersam. Porque era dia e todos ficaram sabendo até quando brilha o sol. Porque o além jamais chega, já que ele está sempre à frente. A busca é eterna para que o sonho permaneça.                                     Os dois viviam no cabresto, até que um dia, sem querer, querendo, a aliança que existia entre eles se rompeu. Subiram pela espiral da escada a cantar "tu és divina e graciosa, estátua majestosa". Camas separadas, colchão mole, colchão duro, canja de galinha e pirão. Ah, como é lindo o amor!?

E o silêncio dormiu à beira-mar na boca sem dentes da Noite, que "cordialmente" tentou vingar-se das perversas arbitrariedades cometidas ao arrepio da lei vigente. A boca que não falava agora grita para um silêncio ensurdecedor.