DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/10/2019

Mãos dadas





Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre os mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade - 1902-1987 

24/10/2019

Cidade prevista





Guardei-me para a epopeia
que jamais escreverei.
Poetas de Minas Gerais
e bardos do Alto Araguaia,
vagos cantores tupis,
recolhei meu pobre acervo,
alongai meu sentimento.
O que eu escrevi não conta.
O que desejei é tudo.
Retomais minhas palavras,
meus bens, minha inquietação,
fazei o canto ardoroso,
cheio de antigo mistério
mas límpido e resplendente.
Cantai esse verso puro,
que se ouvirá no Amazonas,
na choça do sertanejo
e no subúrbio carioca,
no mato, na vila X,
no colégio, na oficina,
território de homens livres
que será nosso país
e será pátria de todos.
Irmãos, cantai esse mundo
que não verei, mas virá
um dia, dentro de mil anos,
talvez mais...não tenho pressa.
Um mundo enfim ordenado,
 uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos,
uma terra sem bandeiras,
sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre, sem ouro,
um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade,
a multiplicidade toda
que há dentro de cada um.
Uma cidade sem portas,
de casas sem armadilha,
um país de riso e glória
como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem.

Carlos Drummond de Andrade - Itabira(MG)31.10.1902-27.08.1987. Se ainda estivesse vivo completaria 117 anos!

16/10/2019

Divagações




Os pensamentos disparam sem rumo certo como faíscas que se espraiam pelo espaço. E o coração cansado de bombear vai sentindo o sangue pulsar pelas veias lentamente, como melaço de cana antes de transformar-se em rapadura.
Gostaria de contar-lhes uma estória, mas são tantas e tamanhas que nem sei por onde começar. Uma estória da boca da noite, ou uma do pé de manacá?
O problema é que a noite está perdendo os dentes,
está ficando banguela de tanta fome. E o manacá está em extinção de uma tal maneira, que a maioria
das pessoas jamais ouviram falar dessa árvore que resiste bravamente na Mata Atlântica do país. De mais a mais, o pé de manacá seria pra depois de um
casamento que nunca ocorreu: "lá detrás daquele morro tem um pé de manacá, nós vamos casar e vamos pra lá, cê quer?". Tem também a estória da bananeira, coitada! Nunca fez mal a ninguém, muito
ao contrário, além de saborosa é nutritiva, e tem salvado muitas crianças desnutridas. Mesmo assim,
muitos ansiosos em prever o seu futuro, cravam-lhe
uma faca virgem e amolada na vã esperança de conhecer as iniciais do nome do suposto amado ou amada!
Quantas estórias poderia contar...!?

07/10/2019

Lírica do ciborgue*




o ciborgue habita
debaixo da tua pele

pouco a pouco
ele toma conta
de todos os teus
 sentidos e não sentidos

com os olhos ele vê
as cores que não há

nos ouvidos
músicas silenciosas

pela pele os toques
tocam nas coisas
imponderáveis
na boca os sabores
sabem de corpos
os desgostos do gosto
no nariz
 os odores são
as dores que sobem
desde a raiz
e no todo, teu corpo
eles inauguram
os movimentos
que são teus pensamentos
na mágica do leve
levitarás em breve
nos espaços
abstratos
de todos os teus atos

trilhões das tuas células
serão sutilmente alteradas
e as funções
dos teus órgãos
serão novas

quando já não terás
um só eu
mas vários eus
que nem sequer
 serás

é com eles que para sempre
viverás
para além do óbvio

Homo Sapiens Ciborgue
irmão de mim próprio.

Ernesto Manuel de Melo e Castro (Portugal, 1932-) em Neo-Poemas-Pagãos

* Ciborgue é um organismo cibernético de partes orgânicas e cibernéticas, com a finalidade de melhorar suas capacidades, utilizando tecnologia artificial.