DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/09/2024

Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim *

 




Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?                                                         O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de português de nenhum concurso oficial. Mas, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.                           Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.                                           Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar". Tive vontade de responder: "Mera coincidência" - mas não o fiz para não entristecer o homem.                                                   Espero que uma velhice tranquila - no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios - me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso, pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama, a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?)                                Alguém já me escreveu também - que eu sou um escoteiro ao contrário. "Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação - contra a língua." Mas acho que isso é exagero. Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Espero que nunca na minha vida, tenha escardinchado ninguém, se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.           Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar. Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para "pegar" as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairel, caireta, cairota ou cariri - e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas de Última Hora ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de O Globo?                                                  No fundo, o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros. Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo de póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente - de Cachoeiro de Itapemirim!

Rio, 1959


* Rubem Braga (Cachoeiro de Itapemirim-ES/ 1913-1990). 

23/09/2024

Do imaginário (fragmentos)

 




Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível.

Jacques Derrida



Tupi ou não tupi, eis uma questão a ser decifrada pela Esfinge. Mas, o que ela quer, há milênios, é nos devorar: - senão, senão morrerão de fome. - Não acreditam? Olhem em volta, e poderão verificar a realidade se transformando em ficção e vice-versa: mentiras, factoides, disseminação de versões distorcidas....

Tratados, compêndios de teses e antíteses abordam abundantemente velhas roupas desbotadas 'à la recherche du temps perdu', um passado que não mais voltará.

17/09/2024

Cruzamento

 





Ela e o Sol se levantavam ao mesmo tempo. Ao 

cruzar a soleira da porta amalgamaram-se. E o dia 

nasceu! 

09/09/2024

Obliquações

 




      Ela está com um lápis na mão pensando. Pensando no lápis ela escreve alguma coisa, e para subitamente. O pensamento voa enquanto o lápis permanece imóvel aguardando o pouso.

      O dia corre com os loucos: querem alcançar a velocidade da luz? Os loucos filhos do dia já apresentam sinais de cansaço. Com as línguas de fora querem falar outras, de mundos diferentes.

03/09/2024

A poesia de Aristóteles

 



Sobre a relva do campo dança a musa de Aristóteles. O velho filósofo volta a cabeça a todo instante, e contempla por algum tempo o corpo juvenil e nacarado. Suas mãos deixam cair no chão o rolo farfalhante do papiro, enquanto o sangue impulsivo e ardente corre-lhe pelo corpo combalido. A musa continua dançando no prado e diante dos seus olhos ela desenvolve um tema complexo de linhas e ritmos.

Aristóteles pensa no corpo de uma moça, uma escrava do mercado de Estagira, que ele não pôde comprar. Também recorda que desde então nenhuma outra mulher turvou sua mente. Agora, porém, quando seus ombros se curvam com o peso da idade e os olhos começam a encher-se de sombras, a musa Harmonia vem tirar-lhe o sossego. Em vão contrapõe à sua beleza as meditações frias: ela retorna sempre e recomeça a dança sutil e envolvente. De nada adianta Aristóteles fechar a janela e iluminar a escrita com uma lâmpada fraca de azeite. Harmonia continua a dançar no seu cérebro e desvia o curso sereno do pensamento, que se mescla de luz e sombra como a água revôlta.

As palavras que escreve perdem a gravidade tranquila da prosa dialética e se encantam em iambos sonoros. Refluem-lhe à memória, como as asas de um vento recôndito, as ressonâncias de sua linguagem juvenil, fortes, impregnadas de aromas campestres.

Aristóteles deixa o trabalho e sai para o jardim, aberto como uma grande flor que o dia primaveril enche de esplendores. Aspira fundo o perfume das rosas, banha o velho rosto na frescura da água matinal.

A musa Harmonia dança à sua frente, fazendo e desfazendo um friso interminável, um labirinto de formas fugitivas onde a razão se transvia. De repente, com uma agilidade inesperada, Aristóteles começa a perseguir a mulher, que foge, quase alada, e se perde no bosque.

O filósofo retorna à cela, extenuado, triste. Apoia a cabeça nas mãos e chora em silêncio a perda dos dons da juventude. Quando olha novamente pela janela, a musa recomeça a dança interrompida. Aristóteles toma a resolução súbita de escrever um tratado que destrua a dança de Harmonia, decompondo-a em todas a suas posições e ritmos. Humilhado, aceita o verso como uma condição inelutável, e se põe a escrever sua obra-prima, o tratado Da Harmonia, que foi queimado na fogueira de Omar.

Durante o tempo que levou na elaboração, a musa dançava para ele. Ao lançar o último verso, a visão desapareceu e a alma do filósofo repousou afinal, livre do agudo aguilhão da beleza.

Mas, uma noite, Aristóteles sonhou que andava de quatro pés pela relva, sob a primavera grega, com a musa montada sobre seu dorso. No dia seguinte grafou estas palavras na abertura do manuscrito: Meus versos são deselegantes como a andadura do asno. Sobre eles, porém, cavalga a Harmonia.


Juan Jose Arreola, México (1918-2001) em 

Confabulário Total.