DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

19/03/2018

Ouse tudo!

Flávio de Carvalho

 

Ouse, ouse...ouse tudo!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é,
aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo
bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima
como o fogo da vida!
 
Lou Andreas-Salomé, filósofa e psicanalista; nasceu em
São Petersburgo (Rússia) em 1861 e faleceu na Alemanha
em 1937.

14/03/2018

O que mudou?


"Gostaria de crer na nova geração, mas não acredito. Todos resolveram fazer da literatura um divã de psicanalista. Voltaram-se para dentro, e infelizmente o
único que se exterioriza é o 'burro blanco'. A minha geração tinha ao menos o que combater, o que destruir. Esta, encontrou o terreno aplainado e não consegue construir nada. Todos bem comportadinhos, uns garotões precoces, querendo ganhar prêmios. É difícil dizer entre eles o que escreve mais corretinho.
Mas vá remexer no fundo, vá procurar idéias, vá auscultar as inquietaçoes. Os críticos, por sua vez, limitaram-se às observações estilísticas. E julgam também que a literatura nada tem a ver com o país onde é produzida. Como todo povo subdesenvolvido, temos a mania de ser requintados. Ninguém se conforma em não ter nascido em Paris. Provavelmente teremos também literatura requintada,
mas estranha a nós, inexpressiva, fria, reacionária. Mensagem aos jovens? Besteira!
Não lerão minha mensagem. É muito mais cômodo romancear os complexos e fazer estilo. Isso dá prêmio,
 dá crítica e até emprego público".

Oswald de Andrade (1890-1954) - Extraído do Jornal da Senzala, n. 1, 1968

08/03/2018

Tisanas



 
Era uma vez uma serpente infinita. Como era infinita não havia maneira de se saber onde estava a sua cabeça. De
cada vez que se lhe tirava uma vértebra não fazia falta nenhuma. Podia-se mesmo parti-la deslocá-la emendá-la.
Ficava sempre infinita. Quem quisesse levar-lhe um bocado
para casa podia pô-lo na parede e contemplar um fragmento da serpente infinita.
 
Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito
e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando uma devorou a outra não ficou nada.
Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come.
 
Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção
do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efêmeras do esquecimento. Depois regressava a casa.
 
 
Ana Hatherly, Porto (Portugal), 1929-2015

02/03/2018

'Fora daqui'


 
Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o
cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou: "Para onde cavalga, senhor?" Não sei direito, eu disse, só sei que é para fora daqui, fora daqui.
Fora daqui sem parar: só assim posso alcançar meu objetivo. "Conhece então o seu objetivo?" perguntou ele.
Sim, respondi, eu já disse: 'fora daqui' é esse o meu objetivo.
 
Franz Kafka, em A partida