DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

27/11/2019

Pai contra mãe (trechos)




A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como
terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro ferro ao pé; havia também a máscara de folhas de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar; e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, nas portas das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
[...]
- Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
- Siga! Repetiu Cândido Neves.
- Me solte!
- Não quero demoras, siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, - coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.
- Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

Machado de Assis (1839-1908)

20/11/2019

Dois poemas de Miriam Alves






C
omecei chorando, agora grito palavras e
lágrimas, os soluços e as agulhas da opressão
que ferem fundo minha pele negra.


Fumaça

Estou a toque de máquina
corro louca, voo, suo
a fumaça sou eu

Estou a toque de nada
vivo, ando,
como a comida envenenada
e o comido sou eu

Estou a toque de selva
os ferros torcidos, sacudidos
dentro de uma marmita
e a marmita sou eu

Nego, mas vivo dizendo
Sim
a tudo que me dói na cabeça
e o doído sou eu


Paro, mas estou sempre correndo
doem as pernas, os pés
e este corpo é o meu

A manhã me encontra acordada
como a noite deixou
e o insone sou eu

Indago, mas não estou escutando
a pergunta anda solta
e ninguém explicou
que a resposta sou eu.
(Cadernos Negros, n.5, 1982)

Pedaços de mulher

Sou eu
que no leito abraço
mordisco seu corpo
com lascivo ardor

Sou eu
cansada inquieta
lanço-me a cama
mordo nos lábios
o gosto da ausência,
sou eu essa mulher

A noite
no eito da ruas procuro,
vejo-me agachada nas esquinas
chicoteada por uma ausência.
Desfaleço
faço-me em pedaços

Mulher
sou eu esta mulher
rolando feito confete
na palma de sua mão

Mulher - retalhos
a carne das costas secando
no fundo do quintal
presa no estendal do seu esquecimento.

Mulher revolta
agito-me contra os prendedores
que seguram-me neste varal
Eu mulher
arranco a viseira da dor
enganosa.

Miriam Alves é natural de São Paulo, assistente social e membro do grupo Quilomhoje. Tem publicado
Momentos de busca, Estrelas nos dedos, Terramara (teatro), entre outros




18/11/2019

Três sonetos de Cruz e Sousa




Livre!

Livre! Ser livre da matéria escrava,
Arrancar os grilhões que nos flagelam
E livre penetrar nos Dons que selam
A alma e lhe emprestam toda a etérea lava.

Livre da humana, da terrestre lava
Dos corações daninhos que regelam,
Quando os nossos sentidos se rebelam
Contra a Infâmia bifronte que deprava.

Livre! bem livre para andar mais puro,
Mais junto à Natureza e mais seguro
Do seu Amor, de todas as justiças.

Livre! para sentir a Natureza,
Para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.


Painel de Rodrigo Rizo, em Florianópolis(SC)



Quando será?!

Quando será que tantas almas duras
Em tudo, já libertas, já lavadas
Nas águas imortais, iluminadas
Do sol do Amor, hão de ficar bem puras?

Quando será que as límpidas frescuras
Dos claros rios de ondas estreladas
Dos céus do Bem, hão de deixar clareadas
Almas vis, almas vãs, almas escuras?

Quando será que toda a vasta Esfera,
Toda esta constelada e azul Quimera,
Todo este firmamento estranho e mudo,

Tudo que nos abraça e nos esmaga,
Quando será que uma resposta vaga,
Mas tremenda, hão de dar de tudo, tudo?!

Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
Que chaveiro do Céu possui as chaves
Para abrir-vos as portas do Mistério?!

João da Cruz e Sousa nasceu na antiga cidade Desterro, atual Florianópolis(SC), em 1861. Era filho de escravos alforriados, e recebeu uma educação formal através do marechal Guilherme Xavier de Sousa, ex-proprietário de seus pais. Tornou-se jornalista, professor e poeta, sendo considerado o precursor da poesia simbolista no Brasil. Faleceu em 1898, aos 36 anos, vítima de tuberculose. Deixou publicados os livros Tropos e Fantasias (contos), Missal e Broquéis (marcos do Simbolismo no Brasil).
São de publicação póstuma os livros Evocações, Faróis, Últimos Sonetos, O livro derradeiro e Dispersos.

13/11/2019

Pirotecnias




A casa tem portas
(sempre fechadas)
tem teto mas não tem
piso (todos pisoteados)

seus habitantes
vivem pendurados
de cabeça para baixo
sem direção própria

Pandora vive num jarro
do lado de fora

05/11/2019

Os Invisíveis (tragédias brasileiras)



Ó Mariana, Mariana,
Quantos fios possui a História?

Que profundeza te banha?
Onde Alphonsus? Onde Ismália?

Onde as casas de tua glória?
A lama subiu nas calhas.



E os gerânios, quem te escora?
Onde o dilúvio sem arca?

E o espesso barro, a memória?
Quando o Ararat do vento

Num penedo nos atava.
Ó Mariana, o que cala

No terror de horda em horda?
A lama subindo as calhas.

Se a morte nos põe sua corda,
Tiradentes quem escuta?

Extraído de "Os invisíveis (tragédias brasileiras)" do poeta, escritor, romancista e ensaísta Carlos Nejar.
Há quatro anos os moradores de Mariana foram invadidos por esse desastre,(05.11.2015) considerado o maior impacto ambiental da história brasileira. Causou mortes e uma destruição difícil de
ser recuperada. Os causadores desse crime continuam em liberdade, e o que é pior, sem pagar as devidas indenizações!
No dia 19.01.2019 ocorreu outra tragédia em Minas Gerais, desta vez no município de Brumadinho, localizado na região metropolitana de Belo Horizonte. Toneladas de rejeitos de minério de ferro, da mineradora Vale provocaram a morte de mais de 250 pessoas! Os criminosos continuam em liberdade.
Até quando? 

01/11/2019

VERBORRAGIA




pernas e pés
a correr
em galerias
de nobres salões
verdes-amarelos
de vergonha

letras palavras
verbos rasgados
esparram-se
em voz dissonante:
autofagia?