DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/06/2020

Fazer carreira




Fazer carreira
é sair correndo por fora
- como um ladrão -
de dentro de si mesmo
virando-se pelo avesso
ao encalço do futuro
engolindo sapos
poemas e sopapos
comendo de tudo
e cometendo sem parar
paráfrases, pastiches, mélanges
marmeladas
competindo
não apenas
por um lugar ao sol
mas pelo lugar do sol
na vanguarda
ou entre os marginais
descendo - subindo ou ao contrário
a escada rolante
a escalada, o escândalo
do sucesso
até conseguir
o crime perfeito
a obra-prima underground
que é o primeiro
ou o último degrau?

Armando Freitas Filho, Rio de Janeiro 1940-

20/06/2020




A palavra final

Falo como as plantas.
Digo como as pedras.

Clamo como o réptil
o miasma e o verme.

Quantas vozes tenho
quando estou calado?

Meu silêncio é a voz
vinda do outro lado

Onde a escuridão
dispensa as palavras

a fala espantada
de quem sabe e cala.

Lêdo Ivo - Maceió(AL)- 1924-2012

14/06/2020

De como se deve evitar ser desprezado e odiado


[...] Um dos mais poderosos remédios de que um príncipe pode dispor contra as
conspirações é não ser odiado pela maioria, porque quem conjura sempre pensa
que, com a morte do príncipe, irá satisfazer o povo, mas, quando percebe que
com isso irá ofendê-lo, não se anima a tomar semelhante partido, mesmo porque as dificuldades para os conspiradores são infinitas. [...]
Concluo portanto, que um príncipe deve dar pouca importância às conspirações
se o povo lhe é benévolo; mas quando os cidadãos adversos o odeiam, deve
temer a tudo e a todos. Os Estados bem organizados e os príncipes hábeis procuram com toda a diligência não desesperar os grandes e satisfazer o povo,
conservando-o contente, mesmo porque este é um dos mais importantes assuntos de um príncipe. [...]
Novamente concluo que um príncipe precisa estimar os grandes, mas não se fazer odiado pelo povo.
Nicolau Maquiavel (Florença 1469-1527), trechos de O Príncipe

09/06/2020

SEMPRE





Sempre essa sensação de inquietude
de esperar mais.
Hoje são as borboletas,
amanhã é a tristeza inexplicável,
o tédio ou a atividade desenfreada
de arrumar esse ou aquele quarto,
de costurar, de ir ali ou acolá
cumprir ordens enquanto o tempo
tapar o universo com um dedo.
Fazer minha felicidade com ingredientes
de receita de cozinha,
lambendo os dedos às vezes,
e às vezes sentindo que nunca
poderei me satisfazer;
que sou um barril sem fundo
sabendo que não me conformarei
nunca! Mas buscando absurdamente
me conformar, enquanto meu corpo
e minha mente se abrem, se estendem
com poros infinitos onde se aninha
uma mulher que gostaria de ser
pássaro, mar, estrela, ventre profundo
dando à luz novos universos reluzentes.
E ando estourando pipocas de milho
em meu cérebro, brancos tufinhos
de algodão, rajadas de poemas
que me assaltam o dia inteiro e
me fazem querer inflar como um balão
para ocupar o mundo, a natureza,
para encharcar-me em tudo e estar
em todos os lugares, vivendo uma
em mil vidas diferentes.
No entanto, hei de lembrar que estou aqui
e que continuarei ansiando,
agarrando pitadinhas de claridade,
fazendo eu mesma meu vestido
de sol, de lua, meu vestido verde
da cor do tempo, com o qual
uma vez sonhei viver em Vênus.

Gioconda Belli,  Manágua(Nicarágua)- 1948