Quando o poder que emana do povo deixa de ser exercido, ou contra o povo se exerce, alegando servi-lo; quando a autoridade carece de autoridade, e o legítimo se declara ilegítimo; quando a lei é uma palavra batida e pisada, que se refugia nas catacumbas do direito; quando os ferros da paz se convertem em ferros de insegurança; quando a intimidação faz ouvir suas árias enervantes, e até o silêncio palpita de ameaças; quando faltam a confiança e o arroz, a prudência e o feijão, o leite e a tranquilidade das vacas; quando a fome é industrializada em slogans e mais fome se acumula quanto mais se promete ou se finge combater a fome; quando o cruzeiro desaparece no sonho de uma noite de papel, por trás de um cortejo de alegrias especuladoras e de lágrimas assalariadas; quando o mar de pronunciamentos frenéticos não deixa fluir uma gota sequer de verdade; quando a gorda impostura das terras dadas enche a boca dos terratenentes; quando a altos brados se exigem reformas, para evitar que elas se implantem, e assim continuem a ser reclamadas como dividendos políticos; quando os reformadores devem ser reformados; quando a incompetência acusa o espelho que a revela dizendo que a culpa é do espelho; quando o direito constitucional é uma subdisciplina militar e substitui a disciplina pura e simples; quando o plebiscito é palavra mágica para resolver aquilo que a imaginação e a vontade dos que a pronunciam não souberam resolver até hoje; quando se dá ao proletariado a ilusão de decidir o que já foi decidido à sua revelia, e a ilusão maior de que é um benefício; quando os piores homens reservam para si o pregão das melhores ideias, falsificando-as; quando é preciso ter mais medo do governo do que os males que ao governo compete conjurar; quando o homem sem culpa, à hora de dormir, indaga a si mesmo se amanhã acordará de sentinela à porta; quando os generais falam grosso em nome de seus exércitos, que não podem falar para desmenti-los; quando tudo anda ruim e a candeia da esperança se apaga e o If* de Kipling na parede não resolve; então é hora de recomeçar tudo outra vez, sem ilusão, e sem pressa, mas com a teimosia do inseto que busca um caminho no terremoto.
Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no Correio da Manhã, em 14.09.1962.
* If, que em português significa Se, é um poema de Rudyard Kipling, escrito em 1895 e publicado pela primeira vez em 1910.