DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

23/06/2022

O Sobrevivente

 

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.

Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.

Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.


Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.

Se quer fumar um charuto aperte um botão.

Paletós abotoam-se por eletricidade.

Amor se faz pelo sem-fio.

Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O jornal que ainda falta muito para atingirmos um 

nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.


Os homens não melhoraram

e matam-se como percevejos.

Os percevejos heróicos renascem.

Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

03/06/2022

Tentando sonhar...

 

A ventania, Anita Malfatti




Olhei para o céu, e vi um grande livro aberto onde as letras eram estrelas formadas por pontos luminosos, que se deslocavam; as fixas constituíam os parágrafos, e as que se moviam, eram as mudanças de páginas. Esse imenso espelho celeste refletia os grandes astros da literatura universal. De repente, ouvi uma voz a perguntar-me: "- O que vais fazer com este espelho?" Um vento forte soprou em minha janela. Acordei. Preciso aprender a sonhar, a compreender melhor o canto das sereias que desafiavam a lucidez de Ulisses; a importância dos moínhos de vento de Dom Quixote, e sobretudo, continuar buscando a ilha desconhecida, da qual nos falou José Saramago.