DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/01/2023

O caminho branco




Vou por um caminho branco.

Viajo sem levar nada.

Minhas mãos estão vazias.

Minha boca está calada.

Vou só com o meu silêncio

e a minha madrugada.

Não escuto, entre os barrancos,

a voz do galo estridente

que na treva do terreiro

anuncia as alvoradas.

Nem mesmo escuto a minha alma:

não sei se ela vai dormindo

ou me acompanha acordada,

se ela é vento ou se ela é cinza

ou nuvem rubra raiante

no dia que se levanta

como vela desdobrada

em nave que corta as vagas.

Não sei nem mesmo se é alma

ou apenas sal de lágrimas.

Vou por um caminho branco que parece a Via Láctea.

Só sei que vou tão sozinho

que nem sequer me acompanho,

como se eu fosse um caminho

pisado por vulto estranho.

Não sei se é dia ou se é noite

o que surge à minha frente

se é fantasma do passado

ou vivente do presente.

 Não sei se é torrente clara

da água que corre entre pedras

ou se um gavião me espreita

oculto no nevoeiro,

espantalho prometido

ao meu dia derradeiro.

Atravessando barrancos

e plantações de tomates

e ouvindo o canto escarlate

de airosos galos polacos,

vou por um caminho branco:

brancura de bruma e prata.

Entre tufos de carqueja

há constelações de orvalho

e um chão de meio-dia

cega a minha madrugada.

Vou como vim, sem saber

a razão da travessia.

Nem sequer levo na boca

o gosto de água salgada

que relembra a minha infância

feita de mar e de mangue.

Nem sequer levo nos meus olhos de menino

- a mancha rubra de sangue

deixada pelo assassino

que vi certa madrugada.

Vou por um caminho branco

e nada levo nem tenho:

nem ninho de passarinho

nem fogo santo de lenho.

Só vou levando o meu nada.

Foi tudo quanto juntei para oferecer a Deus

nesta madrugada.


Ledo Ivo - Maceió (AL) 1924-2012

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