DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

17/04/2023

Balada do amor através das idades

 



Eu te gosto, você me gosta

desde tempos imemoriais.

Eu era grego, você troiana

mas não Helena.

Saí do cavalo de pau

para matar seu irmão.

Matei, brigamos, morremos.


Virei soldado romano,

perseguidor de cristãos.

Na porta da catacumba

encontre-te novamente.

Mas quando vi você nua

caída na areia do circo

e o leão que vinha vindo,

dei um pulo desesperado,

e o leão comeu nós dois.


Depois fui pirata mouro

flagelo de Tripolitânia.

Toquei fogo na fragata

onde você se escondia

da fúria do meu bergantim.

Mas quando ía te pegar

e te fazer minha escrava,

você fez o sinal da cruz

e rasgou o peito a punhal.

Me suicidei também.

Depois(tempos mais amenos)

fui cortesão de Versalhes,

espirituoso e devasso.

Você cismou de ser freira...

Pulei muro de convento

mas complicações políticas

nos levaram à guilhotina.


[.....]


Agora vamos para o cemitério

levar os corpos dos desiludidos

encaixotados competentemente

(paixões de primeira e segunda classe)


Os desiludidos seguem iludidos

sem coração, sem tripas, sem amor.

Única fortuna, os seus dentes de ouro

não servirão de lastro financeiro

e cobertos de terra perderão obrilho

enquanto as amadas dançarão um samba

bravo, violento, sobre a tumba deles.


Carlos Drummond de Andrade, em Alguma poesia. 1930.

02/04/2023

Fingir que está tudo bem *





fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com a roupa passada a ferro, restos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer? pergunto dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga. 


* José Luís Peixoto - Ponta do Sor (Portugal) - 1974-