- Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir. - Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver. - Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.
- Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada. - Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho. - Experimente, Artur. Só esta noite. - Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito. - Ah, Artur, você é a cruz da minha vida, Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant? - Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant. - Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais. - Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro! - Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!
Carlos Drummond de Andrade, em Contos plausíveis (1981)
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