DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

09/09/2024

Obliquações

 




      Ela está com um lápis na mão pensando. Pensando no lápis ela escreve alguma coisa, e para subitamente. O pensamento voa enquanto o lápis permanece imóvel aguardando o pouso.

      O dia corre com os loucos: querem alcançar a velocidade da luz? Os loucos filhos do dia já apresentam sinais de cansaço. Com as línguas de fora querem falar outras, de mundos diferentes.

03/09/2024

A poesia de Aristóteles

 



Sobre a relva do campo dança a musa de Aristóteles. O velho filósofo volta a cabeça a todo instante, e contempla por algum tempo o corpo juvenil e nacarado. Suas mãos deixam cair no chão o rolo farfalhante do papiro, enquanto o sangue impulsivo e ardente corre-lhe pelo corpo combalido. A musa continua dançando no prado e diante dos seus olhos ela desenvolve um tema complexo de linhas e ritmos.

Aristóteles pensa no corpo de uma moça, uma escrava do mercado de Estagira, que ele não pôde comprar. Também recorda que desde então nenhuma outra mulher turvou sua mente. Agora, porém, quando seus ombros se curvam com o peso da idade e os olhos começam a encher-se de sombras, a musa Harmonia vem tirar-lhe o sossego. Em vão contrapõe à sua beleza as meditações frias: ela retorna sempre e recomeça a dança sutil e envolvente. De nada adianta Aristóteles fechar a janela e iluminar a escrita com uma lâmpada fraca de azeite. Harmonia continua a dançar no seu cérebro e desvia o curso sereno do pensamento, que se mescla de luz e sombra como a água revôlta.

As palavras que escreve perdem a gravidade tranquila da prosa dialética e se encantam em iambos sonoros. Refluem-lhe à memória, como as asas de um vento recôndito, as ressonâncias de sua linguagem juvenil, fortes, impregnadas de aromas campestres.

Aristóteles deixa o trabalho e sai para o jardim, aberto como uma grande flor que o dia primaveril enche de esplendores. Aspira fundo o perfume das rosas, banha o velho rosto na frescura da água matinal.

A musa Harmonia dança à sua frente, fazendo e desfazendo um friso interminável, um labirinto de formas fugitivas onde a razão se transvia. De repente, com uma agilidade inesperada, Aristóteles começa a perseguir a mulher, que foge, quase alada, e se perde no bosque.

O filósofo retorna à cela, extenuado, triste. Apoia a cabeça nas mãos e chora em silêncio a perda dos dons da juventude. Quando olha novamente pela janela, a musa recomeça a dança interrompida. Aristóteles toma a resolução súbita de escrever um tratado que destrua a dança de Harmonia, decompondo-a em todas a suas posições e ritmos. Humilhado, aceita o verso como uma condição inelutável, e se põe a escrever sua obra-prima, o tratado Da Harmonia, que foi queimado na fogueira de Omar.

Durante o tempo que levou na elaboração, a musa dançava para ele. Ao lançar o último verso, a visão desapareceu e a alma do filósofo repousou afinal, livre do agudo aguilhão da beleza.

Mas, uma noite, Aristóteles sonhou que andava de quatro pés pela relva, sob a primavera grega, com a musa montada sobre seu dorso. No dia seguinte grafou estas palavras na abertura do manuscrito: Meus versos são deselegantes como a andadura do asno. Sobre eles, porém, cavalga a Harmonia.


Juan Jose Arreola, México (1918-2001) em 

Confabulário Total.

28/08/2024

Verborragia

 




Letras palavras verbos frases escorrem entre pernas indo se acomodar empilhadas sobre os pés. Letras palavras verbos rasgados esparram-se em vozes dissonantes: pernas e pés correm pelas galerias de nobres salões verdes-amarelos de fome e de vergonha.  

15/08/2024

Os bens alheios *

 




    Nada é mais deplorável e digno de lástima - dizem os ladrões - do que o gesto de um homem surpreendido em flagrante delito contra a propriedade. Treme, balbucia, levanta pesadamente as mãos, agitando-as no como se estivessem vazias. Declara afinal, que não apanhou nada, que tudo é mentira, que se trata sem dúvida de um engano constrangedor.

   Na realidade, é muito difícil reconhecer os próprios erros, e ninguém entrega com prazer o que lhe pertence. Os ladrões, sempre inclinados à fraqueza, sentem um aperto no coração e acabam por levar alguma coisa contra a vontade do dono. Correm graves riscos os que tentam roubar sem o auxílio de um revólver, pois os proprietários os insultam e terminam por tomar a ofensiva. Frequentemente, os jornais nos informam sobre algum imprudente que foi ferido, impunemente, enquanto fugia com as mãos vazias. Entretanto, dizem os ladrões, de vez em quando conseguem encontrar algumas almas arrependidas que devolvem tudo o que têm em demasia, e que acolhem a visita noturna solenemente, como um fato providencial. 


* Juan Jose Arreola, Jalisco (México) - 1918-2001

em Confabulário Total [1941-1961]

07/08/2024

Consequências

 




Por conseguinte, estaria sozinha?

E lá no alto viu um céu coberto de ruas e avenidas e

uma enorme cratera que era sua boca(do céu ou 

dela?)cheia de dentes afiados, e ameaçadores e brancos como as nuvens.  

Uma voz rouca e tonitruante uivava puxando os 

cabelos(de quem?)

Quantos personagens voaram como pássaros cegos

 numa noite escura sobre a cidade coberta de densas

 nuvens prenunciadoras de ventos devastadores;

 quantos se perderam pelos caminhos entre ruínas, palavras ardendo, em chamas, gritos seculares 

 irrompendo do silêncio entre as pedras.

Quantos relatos vãos? Para onde? Para quem?

03/08/2024

Sequências

 




Parou de ler o relato no ponto em que um personagem

 parava de ler o relato no lugar onde um personagem

 parava de ler e se dirigia à casa onde alguém que o

 esperava tinha começado a ler um relato para matar o

 tempo e chegava ao lugar onde um personagem

 parava de ler e se dirigia à casa onde alguém que o

 esperava tinha começado a ler um relato para matar o

 tempo.


Julio Cortázar, em Papéis Inesperados, uma coletânea de textos inéditos e dispersos, escritos pelo autor ao longo de sua vida, e publicados em 2009, vinte e cinco anos após sua morte.

12/07/2024

Das Indefinições




Bem que podia escrever alguma coisa, mas o que é

alguma coisa? 

Mesmo sem saber bem sobre o quê, sobre quem ou

ou tal e qual e etecétera e tal, porque "ao fim e ao

cabo", como dizem atualmente, (virou moda?) é tudo 

igual mesmo pondo e tirando do lugar. 

Nada está no mesmo lugar ou tudo ou quase tudo está

fora-de-lugar, fora-da-lei que nem nos tempos idos e 

sofridos dos reis onde reinava o "cala a boca", o 

calabouço.

Parece até que foi ontem...foi? Não foi?   Ah! Tá tão

recente...mas tem gente que nem se lembra mais   ou

faz de conta que; outros nunca ouviram falar sobre....

Não sei se é refluxo ou reflexo de um antigo fluxo sem

nexo nem amplexo pros dias e noites de hoje em dia...

pois já lá se vão muitos desvios e desvãos entre tantos

devaneios alheios a certos interesses, ou quem sabe...

alhures, sem nenhum parentesco à vista ou a prazo...

sem nenhuma terra achada nos cais, nos aeroportos  e

rodoviárias desse nosso país...!? "Quem acha vive    se

perdendo", como dizia o poeta Agenor, que de sua 

Cartola nos deixou um legado de lindas pérolas para o

nosso cancioneiro popular. Entre achados   e  perdidos

mortos e feridos, vamos endoscopiando em busca    de

alguns pólipos, a ver se saudáveis ou malignos,   para

mantê-los ou extirpá-los.

05/06/2024

 


"Papel , amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia.

Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que

eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem

depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, po -

dem cuidar que te confio cuidados de amor.

Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha

mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado,  entre  a

rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que  podes

achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que     ele

chegue. virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios."


Machado de Assis em Memorial de Aires.

25/05/2024

HESITAÇÃO

 




O HOMEM no meio da escada hesitava há vários dias entre subir e descer.

Os anos passavam e o homem continuava a hesitar: subo ou desço?

Até que certo dia a escada caiu.


GOÇALO M. TAVARES, em O senhor Brecht

20/05/2024

O "olho clínico" de Machado de Assis *

 




A impunidade é o colchão dos tempos; dormem-se aí sonos deleitosos. 

Casos há em que se podem roubar milhares de contos de réis...e acordar

com eles na mão.


Vaca e dinheiro são, como se sabe, expressões correlatas; diz-se vaca 

do orçamento; diz-se também: o pelintra meteu a boca na teta, quando 

se quer deprimir alguém, que andou mais depressa que nós, etc.


Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, não compres mal os outros, 

corrompe e sê corrompido, mas não te esqueças do dinheiro, que é com 

ele que se compram os melões. Mete dinheiro no bolso.



* Pequenos trechos de crônicas escritas por Machado de Assis, da série

"Balas de Estalo" (ao todo foram 126), entre 1883-1886, publicadas no 

jornal A Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro.