DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

19/10/2013

Candeeiro Encantado

 
 
 


 
 
Lá no sertão cabra macho não ajoelha
nem faz parelha com quem é de traição
puxa o facão, risca o chão que nem centelha
porque tem vez que só mesmo a lei do cão.
 
É Lampa, é Lampa, é Lampa,
É Lampião, meu candeeiro encantado
 
Enquanto a faca não sai toda vermelha
a cabroeira não dá sossego, não.
Revira bucho, estripa como corta orelha
que nem já fez Virgulino, o Capitão.
 
Já foi-se o tempo do fuzil papo amarelo,
pra se bater com poder lá do sertão.
Mas Lampião disse que contra flagelo
tem que lutar com parabelo na mão.
 
Falta o cristão aprender com São Francisco
falta tratar o Nordeste como o Sul
falta outra vez Lampião, Trovão, Corisco
falta feijão, ao invés de mandacaru.
 
Falta a Nação acender seu candeeiro,
falta chegar mais Gonzaga lá do Exu,
falta o Brasil de Jackson do Pandeiro,
maculelê, carimbo, maracatu.
 
Lenine/Paulo César Pinheiro


18/10/2013

O traje novo

 
 
O traje novo que eu desejei
seria claro, leve, inconsútil,
teria raios de sol perdidos,
teria cheiro de campo agreste.
 
Com essa amável túnica branda
eu dançaria pelos caminhos,
aérea, fluida, fantasmagórica,
casada às aves e à ventania.
 
Meus gestos suaves se moveriam
seguindo o embalo verde dos ramos
meu corpo eurítimico encerraria
a ingenuidade profunda e lírica
da água mansa e humilde das fontes.
 
Foram-se as horas, foram-se os dias,
foram-se os sonhos. Naquela estrada
por onde andei na inquieta procura
do traje claro, leve, inconsútil,
o sol morrera. Na noite eterna
havia corpos despedaçados,
vozes gemiam gemidos roucos,
lobos uivavam gelando a treva.
 
E a noite enorme vestiu-me inteira
de uivos de lobos, corpos rangentes,
roucos gemidos, roucos gemidos,
roucos gemidos.
 
Oneyda Alvarenga, Varinha(MG) - 1911-1984. Além de poeta e jornalista, Oneyda era musicista e folclorista; e dirigiu a Discoteca Pública Municipal da Prefeitura de São Paulo. Foi aluna de Mário de Andrade, tornando-se sua colaboradora nos trabalhos de pesquisa sobre o folclore e a música brasileira. 


15/10/2013

Uma corajosa moça mal comportada


 


    Léa Maria Aarão Reis


  26 de junho de 1968. Passeata dos cem mil, uma das maiores manifestações de rua da história republicana, no Brasil. Cidadãos de todas as origens, idades, credos e profissões desfilavam pela Avenida Rio Branco, Centro do Rio de Janeiro com uma disposição nunca vista antes. Homens e mulheres desciam dos edifícios de escritórios a todo instante para engrossar a multidão que protestava contra o arrocho, cada vez maior, da ditadura civil-militar no país. Na linha de frente da passeata - a foto é histórica -, um grupo de belas mulheres, atrizes e estrelas do cinema, televisão e teatro, de braços dados, desafiavam, corajosamente, o sistema e os generais. Tonia Carrero, Eva Wilma, Odete Lara, Leila Diniz e Norma Bengell, ela na época com 33 anos, abriam o cortejo. Seis meses depois Norma era presa e o AI-5 amordaçava as moças da comissão de frente, a multidão reunida na avenida e todos brasileiros. Menina criada no Lido, em Copacabana, bairro carioca reduto dos funcionários públicos, nos anos 50, filha de mãe enfermeira e de origem classe média simples, Norma era uma bonita moça recém saída da adolescência, inteligente, com educação básica, um admirável corpo e a determinação singular para os seus 15 anos: queria ser alguém especial na vida. Dura tarefa para a garota de origem modesta, em um tempo em que as mulheres casavam e se conformavam em ser donas de casa bem comportadas como lembrou há dias a recém premiada Nobel da Literatura, a escritora canadense Alice Munro, de 82 anos. Com Norma foi diferente. Ela afirmou, dentre outras conquistas pessoais e profissionais, o protagonismo da mulher da sua geração, das moças que, como ela, não seguiam os modelos sociais ainda rígidos da época. Leila Diniz, uma companheira de geração, costuma ser lembrada como o belo fetiche da liberação da mulher brasileira. Não chegou a envelhecer; morreu jovem e bonita e sua lenda foi preservada. Já Norma, assim como Leila outra moça mal comportada, contribuiu até mais, para salvar quantas meninas da repressão, do conservadorismo e da ignorância. Mas morreu aos 78 anos, e pobre. O primeiro emprego, modelo de uma célebre loja de alta costura carioca, não durou muito. A atmosfera esnobe do lugar e o físico voluptuoso de Norma não se deram bem. Da passarela de moda pulou para o teatro revista, um gênero que, na época, fazia grande sucesso. Ali Norma começou a construir seu prestígio como uma das estrelas dos espetáculos de plumas da boate Night and Day. Trabalhou no primeiro filme, O homem do Sputnik, em 59, e sucedeu Elis Regina no show de bolso Contraponto, da mitológica boate daqueles breves anos dourados, a Zum Zum. Lá tentou a profissão de cantora com a sua voz afinada, mas pequena, adequada para a bossa nova recém nascida; mas insuficiente para voos mais altos. Numa madrugada, no badalado restaurante Fiorentina frequentado por boêmios, artistas, jornalistas e respectivos aspirantes, Norma recebeu do respeitado diretor Ruy Guerra o convite para participar do filme Os cafajestes (1962). Sua sorte ia mudar. Mas havia uma peculiaridade no trabalho: ela devia ser filmada nua – nu frontal -, na sequência de um estupro, à noite, em uma praia. Norma topou. Sua corrida desesperada, sem roupa, pelas areias da Praia do Forte, em Cabo Frio, lindamente iluminada pelo excelente fotógrafo paulista Tony Rabatoni, ia catapultar a moça para a fama, aqui e lá fora. A ajuda veio na mesma época com o filme de Anselmo Duarte, O pagador de promessas, Palma de Ouro do Festival de Cannes. Norma filmava com Anselmo, em São Paulo, e ao mesmo tempo trabalhava com Ruy, no Rio. Na Ponte Aérea, comprava o passaporte de entrada definitiva no mundo artístico: sessenta filmes como atriz, um deles como diretora (era o que mais desejava fazer, quando mocinha), Eternamente Pagu, vários discos gravados e inúmeros trabalhos no teatro e na televisão. Na fase seguinte das várias vidas que viveu intensamente, casou com o ator italiano, Gabrielle Tinti, viveu em Roma no círculo de amigos do legendário cineasta Luchino Visconti e só voltou ao Brasil mais tarde, quando se tornou diretora. Depois da contenda do bloqueio de seus bens pela justiça por um suposto desvio do dinheiro captado para a produção de O guarani, filme que estava dirigindo em 2007, Norma foi sendo posta à margem pelo mercado de trabalho, por vários amigos e conhecidos. “Mesmo se um dia eu ganhasse o Oscar seria sobre o episódio do processo que iam falar”, costumava dizer, entristecida. Norma Bengell foi importante não só para a nossa cultura, como para a política em um sentido mais amplo, comenta o cientista político, Antonio Lassance: “Ela ajudou, se expondo, a combater a ditadura, colocou a cara a tapa contra o regime e arriscou seu prestígio em defesa da liberdade, da democracia e da luta contra o atraso. Hoje, muitos artistas se alinham justamente no sentido contrário e emprestam suas caras ao atraso. Foi figura de destaque na bossa nova e no cinema novo e representou, na época, um novo país que estava surgindo, mais industrializado e mais urbano.” Mesmo nos últimos cinco anos de vida, de doença e solidão, o rosto da Bengell, como era carinhosamente chamada, permaneceu iluminado pelo seu olhar perturbador, penetrante e meio esgazeado, de permanente espanto. Alguém que amou viver e quis entender a geleia geral que a vida é.
 
Extraído de  www.cartamaior.com.br

12/10/2013

Uma "desleitura" de Canção do exílio

 
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torre de ametista,
os sargentos do exército são monistas cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
 
 
Murilo Mendes, Juiz de Fora(MG) - 1901-1975

11/10/2013

Não me arrependo de nada!

 


 
Não, nada de nada,
Não, não lamento nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, para mim tanto faz
 
Não, nada de nada
Não, não lamento nada
Está pago, varrido, esquecido
Não me importa o passado
 
Em minhas lembranças
Acendi o fogo
Minhas mágoas, meus prazeres
Não preciso mais deles
 
Varridos os amores
E todos os seus temores
Varridos para sempre
Recomeço do zero
 
Não, nada de nada
Não, não lamento nada
Pois minha vida, minhas alegrias,
Começam contigo a partir de hoje


Edith Piaf nasceu em 19.12.1915
 
e faleceu no dia 10.10.1963

04/10/2013

Morte de africanos em Lampedusa

 
 
 
Não existe um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie
Walter Benjamin
 
 
 
Cerca de quinhentos africanos provenientes em sua maioria da Eritréia, e da Somália (norte da África) foram vítimas do naufrágio do barco provocado por incêndio criminoso. O número de mortos já alcança mais de trezentas pessoas, incluindo jovens e crianças. Todos eles tentavam fugir das péssimas condições de vida em seu país de origem; na esperança de uma vida melhor se submeteram a condições impostas por indivíduos totalmente destituídos de escrúpulos.
A tragédia (que não é a primeira!) ocorreu nas proximidades da ilha de Lampedusa, ao sul da Sicília, na Itália.
Fico a perguntar-me: até quando esse povo tão sofrido e tão corajoso suportará essa barbárie?


01/10/2013

Os versos de rua

Existem versos em demasia no mundo. Como o vagabundo, que engendra e abandona, a buscar outro atalho, ainda que nada o obrigue ou que espere. Vejo-os formar-se indefesos e saírem em busca de alguém que os protejam. A imensa maioria lhes dá as costas. Quando eles se aproximam, as pessoas desviam o olhar e agem como se eles não existissem. Em seu desamparo os versos se drogam, aspirando o Nada, e ficam inertes na esquina.
 
 

 
 
 
Alguns se dão valor para mostrar-se em lugares públicos. Tão pouco alí os consideram, as pessoas os expulsam de modo grosseiro. Então, eles entram nos vagões do Metrô e tentam divulgar sua mercadoria entre a hostilidade, o desespero ou a indiferença dos passageiros. Não lhes resta outra alternativa senão entrar nas casas, já que não são vistos, e tratar de abrir os olhos, os ouvidos e a mente de quem não os invadiu.
 
 
 
 
 
Como não viver agradecido, se os recolhes por um instante e torna-os parte de tua voz interior, de tua respiração e do fluir rítmico de teu sangue? Pelo menos por essa noite os versos da rua, os filhos da inconsciência e da intempérie, estão a salvo. Amanhã quem sabe. Só existe uma coisa certa: dentro de pouco tempo eles também se terão evaporado. Novas legiões darão testemunho às cidades.
 
 
José Emílio Pacheco, Cidade do México (1939-   )