DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

07/08/2017

Uma estrela chamada Clarice Lispector

 Giorgio de Chirico
 

Apelidada na França de “princesa da língua portuguesa”, Clarice Lispector escrevia como se pudesse salvar a vida de uma pessoa e aproximá-la da beleza silenciosa do mundo. Grande figura da literatura brasileira, por muito tempo permaneceu desconhecida na França. A recente publicação de suas cartas deve contribuir para sua difusão
por: Sébastien Lapaque *
28 de julho de 2017
                  
Comecemos pelo fim. Dois volumes de correspondências publicados no Brasil, ambos traduzidos entre 2015 e 2016 para o francês, permitiram aos admiradores de Clarice Lispector se aproximar intimamente da romancista intangível nascida Chaya Pinkhasovna Lispector, no dia 10 de dezembro de 1920, em Tchetchelnik, Ucrânia. Desembarcada no Nordeste brasileiro aos 2 anos de idade com seus pais para fugir da guerra civil, ela morreu no dia 9 de dezembro de 1977, no Rio de Janeiro. Na França, onde foi descoberta em 1954,2 as quinze obras de ficção publicadas a partir de 1978 pelas edições Des Femmes/Antoinette Fouque não foram capazes de provocar tal familiaridade com essa artista cuja obra evoca Franz Kafka pela angústia e Virginia Woolf pelo refinamento – e a personalidade de algumas das mais misteriosas estrelas da literatura universal, como Katherine Mansfield, Catherine Pozzi, Victoria Ocampo, Simone Weil e Sylvia Plath. O sorriso de “meia satisfação” – como ela descreve o de uma personagem – estampado em suas fotografias guardam intacto seu segredo. Desde Perto do coração selvagem, seu primeiro romance, aos 23 anos, até A hora da estrela, póstumo, cada um de seus livros parece ter sido escrito para construir um muro protetor entre ela e o mundo. Alguns julgaram hermético esse monumento de sensações sutis. A artista se defende, afirmando que ela era tão simples como Bach…
Mãe e filha, judia e cristã, cerebral e sensual, santa e feiticeira, humana e animal, da Europa e da América, ela assumiu sua “tentativa de ser duas”, como diz Ângela Pralini, que dialoga com “o autor” em Um sopro de vida, outro romance publicado após sua morte. Brasileira, pois defendia as perfeições da língua portuguesa e que esse era seu estado civil, Chaya – tornada Clarice – nasceu em uma família onde se falava iídiche. Leitora de A imitação de Jesus Cristo, que propõe uma ascese espiritual, mística, sem sinagoga nem igreja, ela não era praticante, mas foi enterrada segundo sua vontade no cemitério israelita do Caju, no Rio de Janeiro, sob uma lápide com seu nome inscrito em hebraico: “Chaya bat Pinkhas” (Chaya, filha de Pinkhas).
Essa mulher cosmopolita, de quem Giorgio de Chirico pintou um retrato e que foi homenageada com uma estátua de bronze em 2016 na praia do Leme, no Rio, falava muito bem francês, inglês e espanhol. Levava uma existência onírica e viajante na Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos, porém jurava – é preciso acreditar nela – que sentia saudade de seu país, do qual se dizia impregnada depois de ter conhecido “a verdadeira vida brasileira”, em Recife, Pernambuco. “Não sinto nenhum prazer em viajar. Adoraria estar perto de você […]. O mundo inteiro é levemente tedioso, eu acho. O que importa na vida é estar perto de quem amamos. Essa é a grande verdade do mundo. E, se existe um lugar especialmente simpático, é o Brasil”, escreve a uma de suas irmãs, em 1944.
Mais adiante, frequentaria embaixadas e cenáculos literários com o mesmo leve fastio, à exceção talvez de Paris, onde perseguia as lembranças de Marcel Proust e prestava atenção às vozes de François Mauriac, Julien Green e Paul Valéry. Durante quinze anos, seguiu seu marido, Maury Gurgel Valente, um de seus colegas na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e diplomata no Itamaraty, com quem se casou em 1943 e teve dois filhos. Viveu com ele até 1959, antes de se divorciar, cansada de suas infidelidades: a mentira, a fraude e a promessa jurada são alguns temas ocasionais em sua obra. Com problemas materiais constantes nos últimos anos de vida, escreveria crônicas para os jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil e para a revista Manchete, além de contos para O Estado de S. Paulo, e traduzia obras de Jonathan Swift, Júlio Verne, Oscar Wilde e Agatha Christie.
Orgulhosa de ser mulher, Clarice Lispector queria, contudo, escapar do senso comum do ser mulher. Anunciou-o a uma de suas irmãs em uma carta escrita em Belém, sobre os rios da Amazônia, em julho de 1944. Texto surpreendente, em que a escritora desnuda seu coração e anuncia o caráter selvagem de suas personagens femininas – mesmo e talvez principalmente as vencidas, como Macabéa, inquietante imigrante nordestina em A hora da estrela: “Que me interessa que isso suceda a outras mulheres? O que para umas é condição da própria feminilidade noutras é a morte desta e de tudo o que é mais delicado. Sei que eu mesma não presto. Mas eu te digo: eu nasci para não me submeter; e se houver essa palavra, para submeter os outros. Não sei por que nasceu em mim desde sempre a ideia profunda de que sem ser a única nada é possível. […] Se eu fosse me modificar não me transformaria numa mulher normal e comum”. Todas as suas criaturas – Joana, em Perto do coração selvagem; Lori, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres; Ana, no fascinante conto intitulado “Amor”, da coletânea Laços de família; e Lucrécia, em A cidade sitiada – falam assim. Todas têm uma alma de mulher em um corpo de mulher, atravessam a violência, a covardia e a loucura dos homens como Lena Grove em William Faulkner e Sophie Zawistowska em William Styron.
As cartas dirigidas às irmãs mais velhas permitem escutar uma voz do coração de Clarice Lispector em geral abafada em suas obras, oprimidas pelo sentimento trágico da vida e pela impossibilidade do dizer – como A paixão segundo GH, “confissão penitente” que começa com uma série de travessões e em que uma mulher de classe média do Rio de Janeiro conta sobre seu encontro com uma barata. Contrariamente ao que se podia esperar em A maçã no escuro, sua obra anterior, ainda portadora de uma fé ingênua no futuro, não há mais lampejos de esperança nesse romance asfixiante. “Isso não é a eternidade, é a condenação.”
Remete-se à Metamorfose, de Kafka. Mas também a Monsieur Ouine, de Georges Bernanos, publicado no fim de 1943 em francês no Brasil, onde ele viveu a partir de 1938. Grande leitora, Clarice Lispector teria conhecido esse romance no qual o nada aspira o mundo e as palavras, assim como o ralo a água, no fundo da banheira? Quando apareceu Perto do coração selvagem, no mesmo ano, os críticos se perguntaram sobre as influências dessa prosista vinda de outro planeta cujo estilo contrastava com a maioria da produção da época. Entre eles, Álvaro Lins e Sérgio Milliet conheciam bem Bernanos e sua obra. Nenhum dos dois evoca uma relação possível. E Clarice Lispector não menciona, em suas cartas publicadas, o autor de L’Imposture e sua capacidade de fazer sentir a “dominação do infortúnio”. É ainda mais surpreendente que muitas delas sejam dirigidas a dois escritores de sua geração – Lúcio Cardoso e Fernando Sabino –, com os quais ela era ligada. Ambos liam Bernanos e o haviam encontrado em Minas Gerais.
Em Cartas perto do coração, a correspondência entre Lispector e Sabino, trocada entre 1946 e 1969, fala em história da literatura e arte do romance, mas não de Monsieur Ouine. Deslizam por artistas, compartilham com eles seus horrores, suas noites em claro e seus “carnavais sem alegria”. No início da amizade, Lispector havia escrito Perto do coração selvagem e O lustre. Em suas cartas a Fernando, ela evoca a gênese dolorosa de seus romances A cidade sitiada e A maçã no escuro, e de certos contos reunidos em 1960 no livro Laços de família, em geral perpassados por certo terror. Ela fala da coragem que deseja encontrar para dar um passo a mais em direção à obscuridade. “Cada um dos meus novos livros é tão hesitante e tímido quanto um primeiro”, confidencia. Tateando a noite da alma, Lispector não escreve seus livros com ideias, e sim com palavras. “A linguagem é meu esforço humano”, explica G. H., criatura à qual a romancista não deu um nome. A ausência de palavras não torna necessário o infortúnio, o inexprimível nem sempre se abre ao nada, mas às vezes a todo outro, todo Outro, contemplação, atenta ou recolhida – a possibilidade de uma alegria. O que não pode ser dito pode sempre ser vivido. G. H. mais uma vez: “Nunca! Nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro…”.


*Sébastien Lapaque é escritor. Última obra publicada: Théorie d’Alger [Teoria de Argel], Actes Sud, Arles, 2016.

Le Monde Diplomatique Brasil – edição 118 – maio de 2017

 

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