DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

25/01/2025

Ficção ou imaginação?

 





Passaram os dias os meses os anos... - Quantos? -         Tantos, que por enquanto não dá pra contar os tiques dos dias, os taques da noite. Noites e dias, e as horas não passavam, emperradas num poste no meio da rua, debaixo da mesa - onde estariam aquelas horas aqueles dias e noites e meses e anos tantos - Quantos? E era um, eram dois, eram três, eram 100 mil, uma verdadeira legião ensandecida a correr atrás de um bezerro de ouro imaginário que alguém dissera ter visto voando, brilhante e incandescente como o sol do meio-dia; e esse alguém ficara desorientado, com as ideias obnubiladas de tanta claridez que as vistas ficaram turvas e doravante não será fácil atribuir um sentido a esses escritos que seguem na contramão do até aqui esboçado, porque são apenas fragmentos da imaginação ou do imaginário de acordo com a preferência ou o entendimento de quem os ler. Alguns dirão: quanta bobagem, que perda de tempo! Outros mais talvez perguntem: por quê então escrever? E  lhes respondo: por quê não? O cérebro está cheio de perguntas sem resposta e de respostas sem perguntas...        

15/01/2025

A Noite da Revolta

 




- Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir.                                                                - Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver.                                                        - Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.                         

 - Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada.                                                                 - Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho.                                                         - Experimente, Artur. Só esta noite.                         - Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito.                                                           -  Ah, Artur, você é a cruz da minha vida, Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant?                                   - Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant.                       - Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais.                                                                - Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro!                  - Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!                                                           

Carlos Drummond de Andrade, em Contos plausíveis (1981)

29/12/2024

Tatibitateando...

 




Estava ali deitada feito um feto nas páginas de um livro. Naquela noite sem teto e sem estrelas queria apenas um lençol para flutuar no tempo, um jardim de flores não inventadas. Esperou, cheirou o ar e escreveu e rodopiou pelo salão vazio. Tatibitateou palavras para retirar o medo que havia nos ossos.

21/12/2024

Tristes tempos ou tempos tristes...

 Escrita cuneiforme-sumérios-Mesopotâmia




Ontem pensei que havia pensado um pensamento mas quando tentei pensá-lo outra vez era tarde demais: havia perdido a Manhã, e a Noite já estava saindo às pressas com o Dia. Tristes tempos de estrambóticas tecnologias que amealham cabeças, guilhotinam ideias, multiplicam solidões. Cada era tem o seu pensar; todo passado é uma semeadura. Nas franjas da escrita a palavra deixa a sua História.

13/12/2024

Dúvidas

 

Alberto Burri




Jiló. Amargo que nem o coração apertando o peito, e a dúvida se é legume ou fruta; se a vida passa ou fica amarga com o passar dos anos; se a uva é fruta ou passa e adocica quando enruga a pele e transparece seus vasos comunicantes. Os veios atravessam o tempo e a luz? Bobagem, fruta ou legume o jiló será sempre amargo, resta saber se queremos ou se temos condições de suportar seu amargor. Enquanto nos enganamos com supostos questionamentos infrutíferos o tempo vai passando imperceptivelmente, e com ele a nossa vida...Por outro lado, são as dúvidas que nos levam adiante, que nos dão a exata dimensão de nossa incompletude, de nossa imperfeição. 

06/12/2024

Invenção

 



Tinha asas duplas que se escondiam na sombra do sol que incidia sobre a parede. Duas delas se foram com o pensamento que voou até amarelecer a tarde que teimava em não anoitecer. Quando a noite caiu voltaram porque as estrelas haviam pousado sobre si: cada uma foi pro seu lado e o pensamento continuou voando. Planando sobre a cidade deu de cara com uma nuvem de predadores: urubus gaviões carcarás. Devido ao acinzentado da hora concluiu que seria melhor fechar as asas e tornar-se uno e indivisível. E acordar!  

28/11/2024

Um lembrete:

 

Aldemir Martins




Quando vires uma ainda que pequena nuvem escura no horizonte; quando ouvires ainda que ao longe um zumbir parecido com o voo de abelhas; quando sentires no ar um odor nauseabundo, não duvides: há algo de podre ao redor de ti. E se no meio da madrugada acordares em sobressalto supondo ser mais um daqueles pesadelos, não te assustes, é apenas a realidade impondo-se sobre teus insensatos sonhos!

Sonhar que está nas nuvens, num mar de rosas, que ouve as palhas do coqueiro quando o vento dá, ou mesmo o canto do galo ao amanhecer, pode ser apenas um delírio provocado pelas águas de um colírio!

20/11/2024

Cruz e Sousa, o "poeta negro" *


 


Vida Obscura


Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro

Ó ser humilde entre os humildes seres.

Embriagado, tonto de prazeres,

O mundo para ti foi negro e duro.


Atravessaste no silêncio escuro

A vida presa a trágicos deveres

E chegaste ao saber de altos saberes

Tornando-te mais simples e mais puro.


Ninguém te viu o sentimento inquieto,

Magoado, oculto e aterrador, secreto.

Que o coração te apunhalou no mundo.


Mas eu, que sempre te segui os passos,

Sei que cruz infernal prendeu-te os braços

E o teu suspiro como foi profundo!


Post Mortem


Quando do amor das Formas inefáveis

No teu sangue apagar-se a imensa chama

Quando os brilhos estranhos e variáveis

Esmorecerem nos troféus da Fama.


Quando as níveas estrelas invioláveis, 

Doce velário que um luar derrama,

Nas clareiras azuis ilimitáveis

Clamarem tudo que o teu Verso clama  


Já terás para os báratros descido,

Nos cilícios da Morte revestido,

Pés e faces e mãos e olhos gelados...


Mas os teus Sonhos e Visões e Poemas

Pelo alto ficarão de eras supremas

Nos relevos do Sol eternizados!


* João da Cruz e Sousa nasceu em Desterro, atual Florianópolis (SC), em 1861. Era filho de escravos alforriados. Foi jornalista, professor e poeta simbolista. Faleceu em 1898 vítima de tuberculose.

17/11/2024

Lugar comum

 




Sentou-se à varanda. Era tarde quando aquelas gotículas começaram a cair. Lembrava-se que parecia ser noite tão escuro amanhecera o dia. Antenas subterrâneas guardam canções de silêncios: inaudíveis recordações. Passos pesados deslizavam sobre um tablado rangente cujo som se propagava monocordicamente ensurdecendo os sentidos.

Te vejo te escrevo te leio.

Decifras-me?

Ou me devoras?

10/11/2024

Tartarugando...

 


Tartarugando pelos cantos escuros da Terra pressinto o seu ranger de dentes; escuto um batuque de tambores ancestrais, ritmado pela cadência da pisada de um rinoceronte enfurecido e faminto.