DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/08/2013

Corte transversal do poema


 
 
A música do espaço para, a noite se divide em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
 em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
 o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
A outra metade da noite foge do mundo empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.


Murilo Mendes, Juiz de Fora(MG) - 1901-1975



25/08/2013

O erotismo segundo Jorge de Sena

 
 
 

: [...] a mais completa liberdade [deve] ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma sociedade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido ou um grupo de cidadãos hipersensíveis possa ter o direito de governar a vida privada de alguém. [Um dos] prazeres sexuais dos seres humanos tem sido o de reprimir a sexualidade, a própria e a dos outros. Defendo todas as formas de prostituição, como profissão protegida pela lei e vigiada pela saúde pública. Ainda que isso possa chocar muita gente, parece que, desde sempre, houve machos e fêmeas cujo talento na vida, e cuja vocação definida, é emprestarem o próprio corpo. E quem se vende ou quem compra (o que não tem nada a ver com capitalismo, mas com o direito de qualquer pessoa a dispor de si mesma, em acordo com outra) deve ter a protecção da lei contra redes de exploração, chantagens, etc. O que duas pessoas (ou um grupo delas) fazem uma com a outra, fora das vistas dos demais, não diz respeito a esses demais, a não ser que eles vivam na observação mórbida de imaginarem (num misto de horror e curiosidade, que os torna moralistas raivosos) o que os outros fazem. E o que os outros fazem não altera em nada o equilíbrio social. [A pornografia pode ser] um prazer para muita gente e, às vezes, o único que lhes é concedido, pois as pessoas idosas, solitárias, não atractivas, não encontram nunca o chinelo velho para o seu pé doente. Uma prostituição oficializada é obra de caridade para com os feios e os tímidos. [Porque hão-de ser] só os ricos e os de maiores posses a terem acesso à pornografia, e não os pobres? As classes mais desprotegidas deviam ter a sua pornografia mais barata, subsidiada pelo Governo, se o Governo fosse ao mesmo tempo inteligente e progressista nestas matérias. Somos um país imoral, um país depravado às ocultas. Foi isso, no entanto, que nos salvou de mergulhar nas sombras horrendas do puritanismo. Puritanismo que não é parte da nossa herança cultural. Mil vezes a pornografia do que a castração, a prostituição do que a hipocrisia. Se alguma coisa há que deve ser sagrada, é o prazer sexual entre pessoas mutuamente concordantes em dá-lo e recebê-lo, ou negociá-lo. [Os adolescentes e as crianças sempre souberam] muito mais do que os adultos fingem que eles sabem. Raros terão sido os jovens seduzidos na sua inocência. Na maior parte dos casos, o contrário é que é verdade. Se alguma coisa há que deva ser sagrada, é o prazer sexual entre pessoas concordantes em usufruí-lo e partilhá-lo.


 Texto do escritor, poeta, ensaísta e dramaturgo português Jorge de Sena (1919-1978) extraído de Máscaras de Salazar, do jornalista e escritor Fernando Dacosta,  nascido em Caxito, a 100km de Luanda.

24/08/2013

O pior analfabeto é o analfabeto midiático

Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula.
  Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos.
  Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada.
 O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país. Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista Isto É denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.
O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar.
  Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens.
  Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com uma imagem”). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”
. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.
O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista.
  O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos.
 Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil , que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.
  O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.
  Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer:Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
 Celso Vicenzi (com a “ajuda” de Bertolt Brecht)* *Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
Fonte: notaderodape

19/08/2013

Van Gogh e os sonhos de Kurosawa


Dreams (Sonhos), é um filme do cineasta japonês Akira Kurosawa (1900-1998) realizado em 1990. São oito estórias divididas em vinhetas que se baseiam nos sonhos do cineasta. Numa delas o ator e diretor de cinema Martin Scorcese representa o pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890). Um estudante de artes descobre-se dentro dos quadros do pintor durante uma visita ao museu. Nas telas do artista, ele encontra-se com van Gogh num campo aberto, e conversa rapidamente com ele. Logo em seguida, o estudante se perde e faz uma viagem através de outros trabalhos seus tentando encontra-lo. O filme termina com a chegada surpreendente de vários corvos, culminando com o Campo de trigo com corvos, pintada no mesmo ano do seu suicídio. Em apenas seis minutos e alguns segundos ficamos totalmente envolvidos com a arte e a beleza onírica desse maravilhoso cineasta que foi Akira Kurosawa. Vejam, vale a pena!
 


12/08/2013

O canto das sereias...




O canto das sereias é o momento auge em que aqueles que a escutam devem se deixar seduzir pela música das profundezas desconhecidas.
 
 
Maurice Blanchot

11/08/2013

E agora só falta a gente abrir uma padaria...

 Sim, você sempre foi a luz da minha escuridão
A estrada por onde passava o meu caminhão
 Forte conteúdo que eu sempre imaginei
Bochechinhas roseadas como as de um rei
Namoramos um pouquinho nos demos tão bem
Na igreja diante do altar nós dissemos amém
E até hoje eu vivo com a maior alegria
 Sinceramente ainda te acho uma simpatia
Juntos nós tivemos filhos
Juntos ganhamos dinheiro
 Juntos conhecemos quase todo o estrangeiro
Juntos formamos um lar
 Juntos um videocassete
Juntos nós compramos dois Del Rey e um Chevette
E agora só falta a gente abrir uma padaria
Vender pão quentinho à noite
 Café com broa de dia
Você é meu doce gostoso
Que eu como e limpo o prato
Você é meu pãozinho fresco sem bromato
Você é minha vitamina
O meu sonho com recheio
 Meu quindim, meu pão-de-ló
Com chantilly no meio
Por isso a gente deve abrir uma padaria
 Vender pão quentinho à noite
Café com broa de dia...
 


10/08/2013

Sobre a memória

 


(...) Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No absurdo mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.
 
Funes, memorioso - Ficções, de Jorge Luís Borges
 
 
 
Como acontece que sejamos capazes de reconhecer uma pessoa querida, mesmo alguns anos depois(e depois que seu rosto se modificou), ou de reencontrar o caminho de casa todos os dias, ainda que nos muros existam novos cartazes, e que talvez a loja da esquina tenha sido redecorada com novas cores? Isso se dá porque, do rosto amado ou do trajeto habitual, conservamos só alguns traços fundamentais, como um esquema, que permanece invariado por trás de muitas modificações superficiais.(...)
Essa memória seletiva, tão importante para nos permitir sobreviver como indivíduos, funciona também em nível social e permite a sobrevivivência das comunidades. Desde os tempos em que a espécie começava a emitir seus primeiros sons significativos, as famílias e as tribos precisaram dos velhos. Talvez, antes, eles não tivessem utilidade e fossem descartados, quando já não serviam para encontrar comida. Mas, com a linguagem, os velhos se tornaram a memória da espécie: sentavam-se na caverna,  ao redor do fogo, e contavam o que havia acontecido( ou que se dizia haver acontecido, aí está a função dos  mitos) antes de os jovens nascerem. Antes de começar-se a cultivar essa memória social, o homem nascia sem experiência, não tinha tempo de fazê-la, e morria. Depois, um jovem de vinte anos era como se tivesse vivido cinco mil. Os fatos ocorridos antes dele, e aquilo que os anciãos tinham aprendido, passavam a fazer parte de sua memória.
Os velhos, que articulavam a linguagem para consignar a cada um as experiências dos que tinham precedido, representavam ainda, em seu nível mais evoluído, a memória orgânica, aquela registrada e administrada pelo nosso cérebro. Mas, com a invenção da escrita, assistimos ao nascimento de uma memória mineral. Digo mineral porque os primeiros signos foram gravados em tabuínhas de argila, ou esculpidos sobre pedras; porque faz parte da memória mineral também a arquitetura, visto que, das pirâmides egípicias às catedrais góticas, o templo era também um registro de números sacros, de cálculos matemáticos, e por intermédio de suas imagens ou de suas pinturas transmitia histórias, ensinamentos morais: em suma, constituía, como já foi dito, um enciclopédia em pedra.
 
escrita ideográfica
 
E assim como os primeiros ideogramas, caracteres cuneiformes, runas e letras alfabéticas tinham um suporte mineral, também o tem a mais atual das memórias, a dos computadores, cuja matéria-prima é o silício. Hoje, graças aos computadores, dispomos de uma memória social imensa: basta conhecer as modalidades de acesso aos bancos de dados e, sobre um tema qualquer, poderemos obter tudo o que convém saber, uma bibliografia de dez mil títulos sobre um único assunto. Mas não há silêncio maior do que o ruído absoluto, e a abundância de informação pode gerar a ignorância absoluta. Diante do imenso estoque de memória que o computador pode nos oferecer, sentimo-nos todos como Funes: obsedados por milhões de detalhes, poderemos perder todo critério de escolha.
 
HUMBERTO ECO,  em  A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia



07/08/2013

Os Cantos de Maldoror (trecho)



Alberto Burri

 
 

Velho Oceano, tuas águas são amargas...É exatamente o mesmo gosto de fel que a crítica destila sobre as belas artes, sobre as ciências, sobre tudo...Se alguém possui gênio, fazem-no passar por idiota; se alguém tem um belo corpo, torna-se um corcunda horrível. Sem dúvida, é preciso que o homem sinta com toda a força sua imperfeição, cujos três quartos, aliás, só se devem a ele mesmo, para assim criticá-la! Eu te saúdo, velho Oceano!
Velho Oceano, os homens, apesar da excelência de seus métodos, ainda não chegaram, com a ajuda dos meios de investigação da ciência, a medir a profundidade vertiginosa de teus abismos; tens alguns que foram reconhecidos como inacessíveis pelas mais longas, pelas mais pesadas sondas. Aos peixes isso é permitido, aos homens não. Frequentemente tenho me perguntado o que seria mais fácil de reconhecer: a profundidade do oceano ou a profundidade do coração humano! Frequentemente, com a mão na fronte, em pé sobre os navios, enquanto a lua balançava sobre os mastros de maneira irregular, surpreendi-me, fazendo abstração de tudo que não fosse o fim a que aspirava, esforçando-me em resolver esse difícil problema! Sim, qual o mais profundo, o mais impenetrável dos dois: o oceano ou o coração do homem?


 
Isidore Ducasse,  Montevidéu, 1846-1870

01/08/2013

Quatro contos de Lídia Davis

  
 
 
 
 MELANCOLIA DE PRIMAVERA



Estou contente de ver que as folhas estão ficando grandes tão depressa. Daqui a pouco elas vão esconder o vizinho e seu filho, que berra muito.


SOLITÁRIA



Ninguém está telefonando para mim. Não posso nem ver se há recados na secretária eletrônica porque fiquei aqui o tempo todo. Se eu sair, alguém pode telefonar enquanto eu estiver na rua. Aí vou poder ver se há recados na secretária eletrônica quando eu voltar para casa.



INSÔNIA



Meu corpo dói tanto...
Deve ser esta cama pesada me apertando.




CABEÇA, CORAÇÃO



Coração chora. Cabeça tenta ajudar coração. Cabeça explica mais uma vez ao coração como são as coisas: Você vai perder todas as pessoas que ama. Todas elas irão embora. Mas até a terra irá embora, um dia. Então coração se sente melhor. Mas as palavras da cabeça não duram muito nos ouvidos do coração. Coração é muito novo nessa história. Quero ter eles de volta, diz coração. Cabeça é tudo o que coração possui.
Socorro, cabeça. Socorra o coração.


Lydia Davis, nasceu em Massachussets (EUA)em 1947.