Sísifo, de Max Klinger, 1914
Se a pedra de Sísifo não andasse já tão gasta, era boa a ocasião de dar com ela na cabeça dos leitores, a propósito do ano que começa. Mas tanto tem rolado esta pedra, que não vale um dos paralelepípedos das nossas ruas. Melhor é dizer simplesmente que aí chegou um ano, que veio render o outro, montando guarda às nossas esperanças, à espera que venha rendê-lo outro ano, o de 1896, depois o de 1897, em seguida o de 1898, enfim o de 1900...
Que inveja que tenho ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século XX! Que belas coisas ele há de dizer, erguendo-se na ponta dos pés, para crescer com o assunto, todo auroras e folhas, pampeiros e terremotos, anarquia e despotismo, coisas que não trará consigo o século XX, um século que se respeitará, que amará os homens, dando-lhes a paz, antes de tudo, e a ciência, que é o ofício dos pacíficos.
A doutrina microbiana, vencedora na patologia, será aplicada à política, e os povos curar-se-ão das revoluções e maus governos, dando-se-lhes um mau governo atenuado e logo depois uma injeção revolucionária. Terão assim uma pequena febre, suarão um tudo nada de sangue e no fim de três dias estarão curados para sempre. Chamfort, no século XVII, deu-nos a célebre definição da sociedade, que se compõe de duas classes, dizia ele, uma que tem mais apetite que jantares, outra que tem mais jantares que apetite.
Pois o século XX trará a equivalência dos jantares e dos apetites, em tal perfeição que a sociedade, para fugir à monotonia e dar mais sabor à comida, adotará um sistema de jejuns voluntários. Depois da fome, o amor. O amor deixará de ser esta coisa corrupta e supersticiosa; reduzido à função pública e obrigatória, ficará com todas as vantagens, sem nenhum dos ônus. [...]
Mas não roubemos o cronista do mês de janeiro de 1900. Ele, se lhe der na cabeça, que diga alguma palavra dos seus antecessores, boa ou má, que é também um modo de louvar ou descompor o século extinto. Venhamos ao presente.
O presente é a chuva que cai menos que em Petrópolis, onde parece que o dilúvio arrasou tudo, ou quase tudo, se devo crer nas notícias; mas eu creio em poucas coisas, leitor amigo. Creio em ti, e ainda assim é por um dever de cortesia, não sabendo quem sejas, nem se mereces algum crédito. Suponhamos que sim. Creio em teu avô, uma vez que és seu neto, e se já é morto; creio ainda mais nele que em ti. Vivam os mortos! Os mortos não nos levam os relógios. Ao contrário, deixam os relógios, e são os vivos que os levam, se não há cuidado com eles. Morram os vivos!
Podeis concluir daí a disposição em que estou. Francamente, se esta chuva que vai refrescando o verão fosse, não digo um dilúvio universal, mas uma calamidade semelhante a de Petrópolis, eu aplaudiria d'alma, contanto que me ficasse o gosto do poeta, e ver da minha janela o naufrágio dos outros.
[...]
Crônica escrita em 6 de janeiro de 1895
LA FLUIDEZ DEL TEXTO ME ENCANTA. GRACIAS POR COMPARTIR.
ResponderExcluirABRAZOS