DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/02/2016

Ainda hoje


 
 

 
O corpo flambado um dia foi chama inflamada que a brasa na palha espalhou com o auxílio do vento. O copo flambado agora é cinza, pó na ponta língua - agulha que sangra no verbo falar.
O que era já era. Ainda hoje!

23/02/2016

"Instruções para subir uma escada", de Júlio Cortázar




Ninguém terá deixado de observar que frequentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma nova perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa das partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, fica-se na posse momentânea de um degrau ou escalão. Cada um desses degraus, formados como se vê, por dois elementos, situa-se um pouco mais acima e mais adiante do anterior, princípio que dá sentido à escada, já que qualquer outra combinação produziria formas talvez mais bonitas ou pitorescas, mas incapazes de transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar.
As escas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada embaixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções, cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamado pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-a à altura do pé faz-se que ela continue até coloca-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé).
Chegando dessa maneira ao segundo degrau, será suficiente repetir alternadamente os movimentos até chegar ao fim da escada. Pode-se sair dela com facilidade, com um ligeiro golpe de calcanhar que a fixa em seu lugar, do qual não se moverá até o momento da descida.

Aqui creio que, se há algum humor, é um humor que vale por si mesmo, mas ao mesmo tempo sei que quando o escrevi, tentei criar no leitor esse sentimento de estranheza que produz o fato de que de repente nos expliquem algo que naturalmente conhecemos tão bem e que fazemos sem pensar como é subir uma escada: decompor os diversos elementos desse processo em seus distintos tempos era um pouco a intençãp ao escrevê-lo, porque isso pode ser projetado para coisas muito mais complicadas e mais importantes que uma escada.

Extraído do livro Aulas de Literatura - Berkeley, 1980 

19/02/2016

Liberté, egalié, fraternité...?


Violências contra a mulher: os homens franceses no banco dos réus

Hollande concede a graça presidencial a uma condenada pela morte do marido. Na França, de dois em dois dias uma mulher morre nas mãos de um marido violento        


Leneide Duarte-Plon, de Paris*
reprodução
Os imigrantes são violentos e estupradores em potencial, alegam os que querem fechar as portas da Europa aos refugiados. Na França e na Alemanha, a extrema-direita tenta asssimilar os imigrantes a todos os perigos que vão do terrorismo à violência contra mulheres.

Quem não tomou conhecimento do fato que 800 mulheres procuraram a polícia depois do réveillon, na cidade de Colônia, para denunciar abuso sexual e estupro da parte de pessoas que elas disseram ser imigrantes?

O marido de Jacqueline Sauvage era um francês autêntico, “de souche”, como dizem os que distinguem os verdadeiros franceses dos “metecos” que foram chegando com as diferentes ondas migratórias do século XX.

Norbert Marot bateu em sua mulher Jacqueline e abusou sexualmente de suas filhas por longos anos. Até que em 2012, num momento de desespero, um ato considerado legítima defesa por aqueles que a defenderam mas contestado pela acusação, madame Sauvage o matou. Em dezembro de 2015, Jacqueline Sauvage, de 68 anos, foi  condenada a dez anos de prisão.
O caso emocionou grande número de franceses, chocados ao tomar conhecimento das estatísticas: no país dos direitos humanos, de dois em dois dias uma mulher morre nas mãos de um marido violento. São entre 120 e 130 casos por ano. Essas mesmas estatísticas mostram que apenas 10% das mulheres que sofrem de violência conjugal vão à polícia denunciar os maridos ou companheiros violentos.
 Ao conceder a graça presidencial, François Hollande quis que madame Sauvage voltasse ao seio de sua família. Suas filhas depuseram a favor da mãe e comemoraram sua próxima libertação, depois da graça concedida pelo presidente no último dia de janeiro, um recurso que François Hollande só usara uma vez antes desse caso.  A condenação de Jacqueline Sauvage mobilizou mais de 400 mil pessoas que assinaram a petição solicitando a graça presidencial. Jamais uma petição de apoio a uma causa obteve tantas assinaturas em tão pouco tempo.

Entre essas assinaturas, havia muitos homens políticos como Jean-Luc Mélenchon, líder e fundador do Parti de Gauche, além de Daniel Cohn-Bendit, o ex-enfant terrible de Maio de 1968.

A prefeita socialista de Paris, Anne Hidalgo também assinou a petição, assim como outras personalidades do mundo político, de direita como de esquerda.

Jacqueline Sauvage chegou a ser levada duas vezes ao hospital, em 2007 e 2012, depois de ser agredida por seu marido, violento e alcoólatra.

Advogados franceses pretendem defender uma lei para introduzir a noção de “légitime défense différée” para a reação que não se dá num momento de risco iminente de vida. O risco de morte é permanente para as mulheres que sofrem de maus tratos, alegam.

Norbert Marot acordara sua mulher que fazia a sesta dando-lhe socos e ela o eliminou com um fuzil quando ele lhe deu as costas. As filhas do casal deram apoio à mãe durante todo o processo. Duas das três filhas sofreram abuso sexual por parte do pai por longos anos.

* Leneide Duarte-Plon é jornalista, trabalha em Paris e é co-autora, com Clarisse Meireles, da biografia de frei Tito de Alencar, Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar.
 
Extraído de  www.cartamaior.com.br


17/02/2016

Myriam Fraga (1937-2016)

Ars Poética

Poesia é coisa
De mulheres.
Um serviço usual,
Reacender de fogos.
Nas esquinas da morte
Enterrei a gorda
Placenta enxudiosa

E caminhei serena
Sobre as brasas
Até o lado de lá
Onde o demônio habita.

Poesia é sempre assim:
Uma alquimia de fetos.
Um lento porejar
De venenos sob a pele.

Poesia é a arte da rapina.
Não a caça, propriamente,
Mas sempre nas mãos
Um lampejo de sangue.

Em vão
Procuro meu destino:
No pássaro esquartejado
A escritura das vísceras.

Poesia como antojos,
Como um ventre crescendo,
A pele esticada
De úteros estalando.

Poesia é esta paixão
Delicada e perversa,
Esta umidade perolada
A escorrer de meu corpo
Empapando-me as roupas
Como uma água de febre.

 

Ingres - Édipo e a esfinge


A esfinge
 
Revesti-me de mistério
Por ser frágil,
Pois bem sei que decifrar-me
É destruir-me.

No fundo, não me importa
O enigma que proponho.

Por ser mulher e pássaro
E leoa,
Tendo forjado em aço
As minhas garras,
É que se espantam
E se apavoram

Não me exalto.
Sei que virá o dia das respostas
E profetizo-me clara e desarmada

E por saber que a morte
É a última chave,
Adivinho-me nas vítimas que estraçalho.

Myriam Fraga, escritora e poeta nascida em Salvador(BA), foi diretora da Fundação Casa de Jorge Amado e membro da Academia de Letras da Bahia. 


16/02/2016

O ódio político nacional, dos anos 50 ao século 21


De Getúlio até hoje, a mídia prega, manchete a manchete, o mesmo ódio, o mesmo maniqueísmo avassalador, o mesmo anticomunismo mais anacrônico.

 

Luis Nassif - Jornal GGN
Na foto, Carlos Lacerda
No apartamento em rua tranquila do Leblon, Celina do Amaral Peixoto convive bem com seus fantasmas queridos. Além da agricultura sustentável seu foco maior é a recuperação da memória do avô Getulio Vargas e do pai, Ernâni do Amaral Peixoto, um dos políticos mais influentes da história política do estado do Rio de Janeiro.

Acaba de enviar para a editora os escritos da mãe, uma espécie de Diário de Alzira Vargas.

A mãe foi a mulher mais poderosa do país. No dizer de Walther Moreira Salles, “a filha dileta de um ditador amado”.

No ataque integralista ao Palácio Guanabara, saiu de arma em punho nos jardins enfrentando os sediciosos. Era uma ligação tão forte entre pai e filha que, quando ela viajava, Getúlio se sentia mais só. E, após a morte do pai, Alzira só se pacificou depois que escreveu o livro “Getúlio e eu”.
Tem poucas lembranças pessoais do avô, que se matou quando ela era ainda criança. Mas é testemunha e vítima da campanha infame movida pela mídia e pela oposição, comandada por Carlos Lacerda. Até hoje não se fecharam as cicatrizes dos ecos da campanha.
Foi algo que teve início bem antes do seu nascimento.
Quando a mãe era ainda criança,  no início do primeiro governo Vargas, foi fotografada assistindo a uma passeata sentada na calçada chupando um sorvete. Durante anos a foto foi utilizada pela imprensa como prova de que a filha de Vargas era comunista. Sabe-se lá o que o picolé tinha a ver com o comunismo.
Quando deposto, em 1945, o ditador Vargas, o homem que comandou o país ininterruptamente de 1930 a 1947, de forma absoluta de 1937 a 1945, não tinha uma casa para morar. Foi para São Borja morar na casa emprestada pelo irmão Protásio. É a imprensa alardeando sua suposta corrupção.

Nem depois de sua morte, em 1954, cessou o ódio.

Vindos do Sul, os Vargas experimentaram décadas da solidão do poder. Depois da morte de Vargas, a solidão do ódio. A família morava em um apartamento no bairro do Flamengo, durante bom período com segurança de metralhadora à porta devido às ameaças recebidas. Tiveram que suportar as denúncias de corrupção da família, sabendo de dentro a retidão da maioria de seus membros.

Meninas, às vezes Celina e sua prima, filha de Jandira, atendiam o telefone. Do outro lado, vozes da treva vociferando que não bastava Getúlio morrer, mas toda família teria que morrer.

Era pior que as delações da Lava Jato, recorda Celina, porque não tinha justiça envolvida, todos os jornais contra, com exceção da voz solitária da Última Hora, e uma oposição ferrenha de pessoas letradas, preparadas, diferente de hoje, acusando Getúlio de tudo.

Embora presidente eleito, Getúlio não tinha um veículo de mídia capaz de se contrapor à atoarda dos veículos tradicionais, para defendê-lo ou ao menos reconhecer aspectos positivos em seu governo.

Depois da morte de Vargas, a família se manteve fechada, dona Darcy, a viúva, cuidando de suas obras sociais, Alzira cuidando da FGV, Celina dos trabalhos do CPDOC, a maior parte da família de volta ao sul. Filhos e netos sofreram bastante nesse clima de ódio.

Celina nunca cruzou com Carlos Lacerda, o grande algoz de sua família. E dá graças a Deus por isso.

Mas sua alma começou a se apaziguar quando, através da amiga Maria Clara Mariani, se aproximou de seu marido, Sérgio Lacerda, o primogênito de Carlos.

Aos poucos foi se consolidando uma amizade sincera, uma convivência que amenizou o coração de Celina e também de Sérgio. É como se ambos se valessem da amizade para purgar o veneno inculcado na alma brasileira naqueles anos terríveis de macarthismo tropical, que se julgava que não voltassem mais. O mesmo racha entre amigos, a mesma campanha vociferante, o ódio inculcado dia a dia, manchete a manchete, o maniqueísmo avassalador, o anticomunismo mais anacrônico, visando despertar temores supersticiosos da malta.

Tudo isso era Brasil. Tudo isso é Brasil.

13/02/2016

Das perdas cotidianas









OBS: Os três poemas são do poeta Carlos Drummond de Andrade

11/02/2016

Desenho

 

 

Passava dias traçando linhas percorrendo corpos com as mãos, ía até os pés;
caminhava pela cabeça contornava o pescoço subia ao rosto realçando
o contorno da boca; arqueava as sobrancelhas, mas o olhar foi difícil penetrá-lo.
 Detinha-se nos seios no bico dos mamilos até escorregar no sexo sem
conseguir vislumbrar seus segredos.
 Deu forma a figuras que se tornaram imaginárias...
 Por fim conseguiu que suas mãos se quebrassem.
Na tentativa de dar vida a uma criatura inanimada perdeu seu instrumento de trabalho: uma parte de seu corpo incorporou-se àquelas linhas...

07/02/2016

Já que é carnaval...



 
Ai, ai, ai, Poesia qu'eu não
consigo olhar pra ti:
o espelho está cego
a ilusão virou farelo que
a formiguinha não aguenta
carregar nos ombros
 
meu olhos fechados tudo
veem; a poeira é branca
e da pedra de amolar
 pensamentos saltam
palavras correnteza abaixo
 
o que acontece contigo, Poesia
quando te vendem
 a qualquer um
e esse um
 desaparece da face da terra
deixando apenas
 pinceladas de sangue
nas paredes da alma
feito natureza morta?
 
Sou filha do samba do frevo
e da batucada que ecoa
das primitivas cavernas
e mesmo assim não consigo
decifrar os sentimentos dos
pirilampos que saltam
em círculos desconexos
fantasiados de ti, Poesia!

05/02/2016

Ô Abre Alas pra "Continha na Suíça"

 
Eu também tenho uma continha na Suíça
Ai que delícia! Ai que preguiça!
Ver minha cara todo dia no jornal
Já sei que sou um herói nacional
 
Depois é somente correr pro abraço
Mermão, esse dólar é mesmo um cracaço
Iate de luxo, é ouro, é prata...
Trabalhei duro pra ser um magnata!
 
Severino Lula Araújo, compositor pernambucano de frevos


02/02/2016

Bibliotecas

Kyoto, Japão

 
 
Sonhamos com uma biblioteca de literatura criada por todos e pertencente a ninguém, uma biblioteca que seja imortal e misteriosamente capaz de conferir ordem ao universo, e entretanto sabemos que toda opção por uma ordem, todo reino catalogado da imaginação supõe uma hierarquia tirânica de exclusões. Toda biblioteca leva à exclusão, uma vez que seu acervo, por vasto que seja, deixa para fora de suas paredes incontáveis prateleiras de literatura que, por razões de gosto, conhecimento, espaço e tempo, não foram incluídas. [...] Das noventa peças de Ésquilo, apenas sete chegaram até nós; dos oitenta e tantos dramas de Eurípedes, apenas dezoito; das 120 peças de Sófocles, meras sete. [...] Toda biblioteca ao mesmo tempo acolhe e rejeita. Toda biblioteca é, por definição, fruto de uma escolha, e de âmbito necessariamente limitado. E cada escolha exclui uma outra, uma opção descartada. O ato da leitura corre infinitamente em paralelo ao ato da censura. A censura implícita começa com as primeiras bibliotecas mesopotâmicas de que temos notícia, no começo do terceiro milênio a. C. À diferença dos arquivos oficiais, destinados a preservar as transações cotidianas e os negócios efêmeros de um certo grupo, essas bibliotecas coligiam obras de natureza mais geral, como as assim chamadas inscrições reais (tabuletas comemorativas de pedra ou metal que relatavam acontecimentos políticos importantes, semelhantes aos cartazes seiscentistas na Europa ou aos best sellers políticos de hoje).
[...]
Os donos do poder banem livros por razões bizarras. Notoriamente, o general Pinochet excluiu das bibliotecas chilenas o Dom Quixote porque considerou que o romance continha argumentos a favor da desobediência civil; anos atrás o ministro da Cultura do Japão fez objeções a Pinóquio por mostrar imagens pouco lisonjeiras de indivíduos deficientes nas figuras do gato que finge ser cego e da raposa que finge ser manca. Em março de 2003, o cardeal Joseph Ratzinger (o futuro papa Bento XVI) afirmou que os livros de Harry Potter "distorcem profundamente a cristandade da alma, antes mesmo que ela possa se desenvolver como é devido". Formularam-se outras tantas razões idiossincráticas para banir todo tipo de livros, do Mágico de Oz (um viveiro de crenças pagãs) a O apanhador no campo de centeio (um modelo perigoso para adolescentes). [...]
Como já disse, toda biblioteca, por sua própria existência, conjura seu duplo proibido ou esquecido: uma biblioteca invisível, mas formidável, feita de livros que, por razões convencionais de qualidade, tema ou volume físico, foram considerados inaptos para a sobrevivência sob esse teto específico.
 
 
Alberto Manguel em A biblioteca á noite - Companhia das Letras