DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/07/2016

Língua


Cláudia Alexandra Manta
 
Uma colmeia de línguas atravessa a garganta desce esofagicamente por desfiladeiros escorregando pelas grutas verbais, entre serpentes que sinuosamente se escondem em labirintos de braços linguísticos desconhecidos:
língua-de-gato, língua-de-vaca, língua suja, língua de trapos, língua-de-porco,
língua pura, língua podre, língua-pátria, língua preta, ioruba, língua tupi-guarani, amarela, azul e verde, língua árabe, apátrida, afiada, malcriada,
sibilina. Com quantas vozes se faz uma língua? De boca em boca nutre corpos
distorce palavras, desfaz acontecimentos, revela fatos, alimenta ideias e ideais,
difunde opiniões, pensamentos e descobertas; desmancha mentiras, constrói a história dos povos.
Quem você pensa que é?
Quem você pensa que somos?
Abra a boca.
Mostre sua língua, e diga: Ah! Diga B, diga C, diga o que lhe vier à cabeça!
Rasgue o verbo, a gramática normativa, as regras, a censura imposta sub-repticiamente. Solte sua língua, deixe-a voar com os pássaros, atravesse
os oceanos, os vales, as montanhas. Conheça outros falares.
Navegue pelo inesgotável universo da Língua!

24/07/2016

William Blake - O Tigre


 
Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria ?
Em que longínquo abismo, em que remotos céus
Ardeu o fogo de teus olhos ?
Sobre que asas se atreveu a ascender ?
Que mão teve a ousadia de capturá-lo ?
Que espada, que astúcia foi capaz de urdir
As fibras do teu coração ?
E quando teu coração começou a bater,
Que mão, que espantosos pés
Puderam arrancar-te da profunda caverna,
Para trazer-te aqui ?
Que martelo te forjou ? Que cadeia ?
Que bigorna te bateu ? Que poderosa mordaça
Pôde conter teus pavorosos terrores ?
Quando os astros lançaram os seus dardos,
E regaram de lágrimas os céus,
Sorriu Ele ao ver sua criação ?
Quem deu vida ao cordeiro também te criou ?
Tigre, tigre, que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão, que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria ?
 
Tradução de Angelo Monteiro


19/07/2016

Diário de um retorno ao país natal (trechos)



 
 
"...E não são unicamente as bocas que cantam, mas
as mãos, os pés, as nádegas, os sexos, e a criatura
 inteira que se liquefaz em sons, voz e ritmo
chegando ao ápice de sua ascensão, a alegria
arrebenta como uma nuvem. Os cantos não param,
mas rolam agora inquietos e pesados pelos vales do
medo, os túneis da angústia e os fogos do inferno.
Cada um põe-se a comer o pão que o diabo mais próximo
amassou até que o medo se desfaça
invisivelmente nos finos areais do sonho, e vive-se
verdadeiramente como num sonho, cochilando também
como num sonho com pálpebras de pétalas de rosa, e
o dia chega aveludado como um sapoti, e o aroma
de chorume dos cacaueiros, e os perus que desfilam
suas pústulas rubras ao sol, e a obsessão dos sinos
e a chuva
os sinos...a chuva
que repicam, repicam...
No fim da madrugada, essa cidade achatada - exposta
 
*
 
Quem e o que somos? Admirável pergunta!
De tanto olhar as árvores tornei-me uma árvore e
meus longos pés de árvore cavaram no solo
largas bolsas de veneno, altas cidades de ossadas
de tanto pensar no Congo
tornei-me um Congo farfalhante de florestas e rios
onde o chicote estala como um grande
estandarte
o estandarte do profeta
onde a água faz
licualá-licualá
onde o raio da cólera lança seu machado esverdeado e
acua os javalis da putrefação na bela orla
violenta das narinas
 
Aimé Césaire, poeta, ensaísta, dramaturgo; nasceu na ilha de Martinica(país do Caribe, colonizado pelos franceses), em 1913 e faleceu em 2008. É considerado um dos maiores poetas da língua francesa do século XX.

13/07/2016

William Shakespeare - 4 Sonetos

 
Royal Shakespeare Theater-Stratford-upon-Avon

 
XII
 
Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata preta têmpora assedia;
Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia a sombra franca
E em feixe atado agora o verde trigo
Seguir no carro, a barba hirsuta e branca;
Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo a dura prova,
Pois as graças do mundo em abandono
Morrem ao ver nascendo a graça nova.
Contra a foice do Tempo é vão combate,
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.
 
XV
 
Quando observo que tudo quanto cresce
Desfruta a perfeição de um só momento,
Que neste palco imenso se obedece
À secreta influição do firmamento;
Quando percebo que ao homem, como à planta,
Esmaga o mesmo céu que lhe deu glória,
Que se ergue em seiva e, no ápice, aquebranta
E um dia enfim se apaga da memória:
Esse conceito da inconstante sina
Mais jovem faz-te ao meu olhar agora,
Quando o Tempo se alia com a Ruína
Para tornar em noite a tua aurora.
E crua guerra contra o Tempo enfrento,
Pois tudo que te toma eu te acrescento.
 
 
XVIII
 
Devo igualar-te a um dia de verão?
Mais afável e belo é o teu semblante:
O vento esfolha Maio inda em botão,
Dura o termo estival um breve instante.
Muitas vezes a luz do céu calcina,
Mas o áureo tom também perde a clareza;
De seu belo a beleza enfim declina,
Ao léu ou pelas leis da Natureza.
Só teu verão eterno não se acaba
Nem a posse de tua formosura;
De impor-te a sombra a Morte não se gaba
Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.
Enquanto houver viventes nesta lida,
Há de viver meu verso e te dar vida.
 
 
XIX
 
Tempo voraz, ao leão cegas as garras
E à terra fazes devorar seus genes;
Ao tigre as presas hórridas desgarras
E ardes no próprio sangue a eterna fênix.
Pelo caminho vão teus pés ligeiros
Alegres, tristes estações deixando;
Impões-te ao mundo e aos gozos passageiros,
Mas proíbo-te um crime mais nefando:
De meu amor não vingues o semblante
Nem nele imprimas o teu traço duro.
Oh! permite que intacto siga avante
Como padrão do belo no futuro.
Ou antes, velho Tempo, sê perverso:
Pois jovem sempre há-de o manter meu verso.
 
 
William Shakespeare, nasceu em Stratford-upon-Avon(Inglaterra) em
1564 e faleceu em 1616. Apesar dos 400 anos de sua morte, sua obra permanece viva e atual.
 
Tradução de Ivo Barroso

11/07/2016

Canto Guarani da Raça Brasil


I

Sou da Raça Brasil
antes e depois
do apagão da história

II

Sou da Raça Brasl
antes e depois
quando tempo d'avô Tupinambá
não tinha "Mercosul"
mas andava
do Ipiranga ao Pará
da Bolívia ao Uruguai,
da Argentina ao Paraguai
língua era franca
mas, Marquês português
neto de pajé bis de africana
de Lisboa proibiu...

III

Sou da Raça Brasil
antes, e depois
quando bandeirante europeu
pegou no laço meu povo.

IV

Sou da Raça Brasil
antes, e depois
quando Áfricos chegaram
acorrentados no corpo e na alma.

V

Sou da Raça Brasil
antes, e depois
do afago dos nossos sangues
guarani, euro e afro
misturados na marra.

VI

Sou da Raça Brasil
antes, e depois
de nossas veias canais
de rios de sangue
Amazonas e Tejos,
Zambeses e Congos das quitandeiras
e de mares mediterrânicos
de pão sírio e pizza marguerita
e outros mais a norte, rios Danúbios
e Renos de Bavieras "Deutschland"
Uberlândia acima de tudo.

VII

Sou da Raça Brasil
antes, e depois
da chegada de outros Iguaçus
mais além de Hokaido
e do golfo de Tonkim
(adiando meu fim)

VIII

Sou da Raça Brasil
antes, e depois
quando espoliado do céu e da terra
(e do nome)
insistem e me chamam indígena ou de índio
(e nem sou da Índia)
meu canto e acalanto é Guarani
e sou da Raça Brasil!



João Craveirinha, escritor e pintor, natural da Ilha de Moçambique. É autor de vários livros, entre os quais "Moçambique, Feitiços, Cobras e Lagartos", "Jezebela - O charme indiscreto dos 40", "A Pessoa de Fernando ignorou a África", "Crônicas da Aldeia Global".

07/07/2016

"A ideia da poesia...



 
como uma coisa para as virgens, e pras estrelinhas do céu é uma ideia estapafúrdia, a poesia é um dos instrumentos da visão do homem, mais profunda. É por isso que ela tem tanta importância na nossa vida, e todas as culturas sempre colocaram a poesia num patamar elevado, num alto grau do espírito humano; ela está sempre situada num nível elevado porque ela é uma
forma de contato especial com a realidade, ela é um tipo de verdade, o caroço
da verdade, como diz o Roberto Piva; é sempre uma busca do poeta, o poeta
diz verdades, ainda que às vezes apareça para o olhar comum como um disparate".
 
 
Davi Arrigucci Jr, escritor e crítico literário (São João da Boa Vista(SP)- 1943)

04/07/2016

"Sarapatel"


 
 
Separe algumas fissuras de palavras, (ou textos, ou poemas) coagulados e corte-os em pequenos cubos; em seguida, coloque-as numa parte do seu cérebro para ferver. Se preferir, deixe-as congelando em sua cabeça até atingir
o ponto de saturação. Quando sentir que já não suporta mais despeje-as
numa folha em branco sob a forma de sinais ou códigos indecifráveis. Ato
contínuo passe-as para uma página da web. Publique-as!
 
 
Uns dedos tortos teu nariz com piercing farejam mãos avulsas que dançam
no salão oval da catedral ao som duma canção a capela.