DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

07/02/2017

Da singualridade da palavra "ovo"



 
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Virou-se, então, para o quadro e traçou, com uma caligrafia extremamente segura para quem estivera trêmulo havia até bem pouco, em maiúsculas, a palavra ovo.
[...] Voltando a encarar a turma, com a simpatia de quem profetizava um bom
relacionamento com ela durante o curso, disse:
"Na palavra ovo, em nossa língua, mais do que em qualquer outra língua ou palavra, encontra-se em sua plenitude concreta a imagem do seu referente, a entidade que ela expressa, ou seja, o próprio ovo, de forma a mais ampla possível. Não só por conter, por duas vezes, no vão da letra O, principalmente quando em maiúscula, a figura do ovo, como pelo fato de que, circularmente, a palavra pode ser lida de frente para trás ou de trás para diante sem qualquer perda de forma e substância, num acabamento fechado e perfeito, correspondendo ao do próprio ovo. Podemos chamar a atenção, também, para este vértice e vórtice da letra V, como uma abertura e ligação, um cordão umbilical, penetrando no interior deste receptáculo da própria vida."
Os alunos cochichavam entre si e ele pediu gentilmente silêncio, pois ainda havia algo mais:
"A coisa, porém, não permanece aí. Porque ao pronunciarmos a mesma palavra ovo", e ele a pronunciou por três vezes: ovo, ovo, ovo, "deparamos com a surpresa ainda maior de que ela contém, também oralmente, o desenho acústico do ovo, não igual a simples onomatopeia, mas a um verdadeiro ideograma sonoro, como se os criadores da língua latina, ao elegerem o vocábulo ovu para tal substância e sua forma, se encontrassem acometidos do gênio da onomatbesia grega, ou a capacidade de dar nome às coisas de acordo com a sua natureza. Só que no caso da escrita, faltou-lhes esse arredondamento final do segundo O, como se deixassem escapar, no último momento, algo desta forma e substância. Sua verdadeira gema.
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Já em português, a palavra é revestida de uma acústica de ecos infinitos e circulares, um sonar nas profundezas, e, se a entoarmos incessantemente, será como uma invocação, um mantra, como o Om, Om, Om dos indianos, religando-nos através do verbo ao verbo primeiro e ao todo de onde se originou e do qual se afastou, restabelecendo o elo com o indiferenciado, o caos, negro ou branco,
o útero, a origem, o átomo primeiro, o ovo cósmico, enfim!

Extraído do conto A aula, de Sérgio Sant'Anna (Rio de Janeiro, 1941), autor de O sobrevivente, O voo da madrugada, O homem-mulher, O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro; recebeu quatro vezes o prêmio Jabuti. 

Um comentário:

  1. Un relanto redondo, bueno, ovalado como el "ovo" y en el que cabe la ironía, la sonrisa, la erudición y la reflexión.

    He pensado usar "ovo" como mantra para relajarme, es más cercano a mi cultura y además mucho más nutritivo.

    Por cierto, nada como unos huevos fritos en aceite de oliva con unos pimientos asados para encarar un día duro.

    Muchos besos,

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