DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/07/2017

De Machado de Assis



 
Não é desprezo pelo o que é nosso, não é desdém pelo meu país. O "país real",
esse é bom, revela os melhores instintos. Mas o "país oficial", esse é caricato
e burlesco!

26/07/2017

O livro de areia

Todos os livros ainda estão para serem lidos,
e suas leituras possíveis são múltiplas e infinitas;
o mundo está para ser lido de várias formas;
nós mesmos ainda não fomos lidos.
Jorge Larrosa
 
 
 



  A linha consta de um número infinito de pontos: o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos; o hipervolume, de um número infinito de volumes ... Não, decididamente não é este, more geométrico, o melhor modo de iniciar minha narrativa. Afirmar que é verídica é agora uma convenção de toda narrativa fantástica; a minha, no entanto, é verídica.
     Moro sozinho, num quarto andar da rua Belgrano. Fará uns meses, ao entardecer, ouvi uma batida na porta. Abri e entrou um desconhecido. Era um homem alto, de traços mal delineados. Talvez minha miopia os tenha visto assim. Todo o seu aspecto era de pobreza decente. Estava de cinza, trazia uma valise cinza na mão. Senti de imediato que era estrangeiro. De início, julguei-o velho; logo me dei conta de que seu escasso cabelo loiro, quase branco, à maneira escandinava, enganara-me. No decorrer de nossa conversa, que não duraria uma hora, soube que procedia das Orcadas.
      Apontei uma cadeira para ele. O homem tardou um pouco a falar. Exalava melancolia, como eu agora.
     __ Vendo bíblias __ disse.
     Não sem pedantismo, respondi:
     __ Nesta casa há algumas bíblias inglesas, inclusive a primeira, a de John Wiclif. Tenho também a de Cipriano de Valera, a de Lutero, que literariamente é a pior, e um exemplar latino da Vulgata. Como o senhor vê, não são exatamente bíblias o que me falta.
     Depois de um silêncio, respondeu:
     __ Não vendo só bíblias. Posso lhe mostrar um livro sagrado que talvez lhe interesse. Comprei-o nos confins de Bikanir.
     Abriu a valise e deixou-o em cima da mesa. Era um volume in-oitavo, encadernado em tela. Sem dúvida passara por muitas mãos. Examinei-o; seu peso inusitado surpreendeu-me. Na lombada dizia
Holy Writ e, embaixo, Bombay.
     __ Será do século XIX __ observei.
     __ Não sei. Nunca soube __ foi a resposta.
     Abri-o ao acaso. Os caracteres eram estranhos para mim. As páginas, que me pareceram gastas e de pobre tipografia, estavam impressas em duas colunas à maneira de uma Bíblia . O texto era cerrado e disposto em versículos. No canto superior das páginas havia algarismos arábicos. Chamou minha atenção  que a página par trouxesse o número (digamos) 40 514 e a ímpar, a seguinte, 999. Virei-a; o dorso era numerado com oito algarismos. Trazia uma pequena ilustração, como é de uso nos dicionários: uma âncora desenhada à pena, como pela mão inábil de um menino.
     Foi então que o desconhecido me disse:
     __ Olhe-a bem. Nunca mais a verá.
     Havia uma ameaça na afirmação, mas não na voz.
     Fixei-me no lugar e fechei o volume. Imediatamente o abri. Procurei em vão a figura da âncora, folha por folha. Para ocultar meu desconcerto, disse:
     __ Trata-se de uma versão da Escritura em alguma língua hindustânica, não é verdade?
     __ Não __ replicou.
     Em seguida baixou a voz como para me confiar um segredo:
     __ Adquiri-o num povoado da planície, em troca de umas rupías e da Bíblia. Seu dono não sabia ler. Suspeito que no Livro dos Livros viu um amuleto. Era da casta mais baixa; as pessoas não podiam pisar sua sombra, sem contaminação. Disse-me que seu livro se chamava O livro de areia, porque nem o livro nem a areia têm princípio ou fim.
     Pediu-me que procurasse a primeira folha.
     Apoiei a mão esquerda sobre a portada e abri com o polegar quase grudado ao índice. Tudo foi inútil: sempre se interpunham várias folhas entre a portada e a mão. Era como se brotassem do livro.
     __ Agora procure a final.
     Também fracassei; mal consegui balbuciar com uma voz que não era a minha:
     __ Isto não pode ser.
     Sempre em voz baixa, o vendedor de bíblias disse:
     __ Não pode ser, mas é. O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira: nenhuma, a última. Não sei por que são numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer número.
     Depois, como se pensasse em voz alta:
     Se o espaço for infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo for infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.
     Suas considerações irritaram-me. Perguntei:
     __ O senhor é, sem dúvida, religioso?
     __ Sim, sou presbiteriano. Minha consciência está limpa. Estou seguro de não ter ludibriado o nativo quando lhe dei a Palavra do Senhor em troca do seu livro diabólico.
     Assegurei-lhe que não tinha por que se recriminar e lhe perguntei se estava de passagem por estas terras. Respondeu-me que dali a alguns dias pensava regressar à sua pátria. Foi então que soube que ele era escocês, das ilhas Orcadas. Disse-lhe que eu gostava pessoalmente da Escócia pelo amor a Stevenson e a Hume.
     __ E a Robbie Burns __ corrigiu.
     Enquanto falávamos, eu continuava explorando o livro infinito. Com falsa indiferença perguntei:
     __ O senhor pensa oferecer este curioso espécime ao Museu Britânico?
     __ Não. Ofereço-o ao senhor __ replicou, e fixou uma soma elevada.
     Respondi-lhe, com toda a sinceridade, que aquela era uma soma inacessível para mim e fiquei pensando. Depois de uns poucos minutos, tinha urdido meu plano.
     __ Proponho-lhe uma troca __ disse. __ O senhor obteve esse volume por umas rupias e pela Escritura Sagrada; eu lhe ofereço o montante de minha aposentadoria, que acabo de receber, e a Bíblia de Wiclif em letra gótica. Herdei-a de meus pais.
     __ A black letter Wiclif! __ murmurou.
     Fui a meu quarto e trouxe-lhe o dinheiro e o livro. Virou as páginas e estudou o frontispício com fervor de bibliófilo.
     __ Trato feito __ disse.
    Assombrou-me que não regateasse. Só mais tarde eu compreenderia que entrara em minha casa com a intenção de vender o livro. Não contou as notas, e guardou-as.
     Falamos da Índia, das Orcadas e dos jarls noruegueses  que as governaram. Era noite quando o homem foi embora. Não voltei a vê-lo nem sei o nome dele.
     Pensei guardar O livro de areia no lugar que tinha deixado o Wiclif, mas optei afinal por escondê-lo atrás de uns volumes avulsos d'As mil e uma noites.
     Deitei-me e não dormi. Às três ou quatro da manhã acendi a luz. Fui buscar o livro impossível e virei as folhas. Numa delas vi gravada uma máscara. O canto tinha um algarismo, já não sei qual, elevado à nona potência.
      Não mostrei a ninguém meu tesouro. À felicidade de possuí-lo veio somar-se o temor de que o roubassem, e depois o receio de que não fosse verdadeiramente infinito. Essas duas inquietações agravaram minha já velha misantropia. Restavam-me uns amigos: deixei de vê-los. Prisioneiro do livro, quase não saía à rua. Examinei com uma lupa a lombada desgastada e as capas, e afastei a possibilidade de qualquer artifício. Comprovei que as pequenas ilustrações distavam duas mil páginas uma da outra. Fui anotando-as num livreto alfabético, que não demorei a preencher. Nunca se repetiram. De noite, nos escassos intervalos que a insônia me concedia, sonhava com o livro.
     O verão declinava, e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me adiantou considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que ele era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade.
     Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente infinita e sufocasse com fumaça o planeta.
     Lembrei-me de ter lido que o melhor lugar para esconder uma folha é um bosque. Antes de me aposentar, trabalhava na Biblioteca Nacional, que guarda novecentos mil livros; sei que à direita do vestíbulo uma escada curva se afunda no porão, onde estão os periódicos e os mapas. Aproveitei um descuido dos empregados para perder O livro de areia numa das úmidas prateleiras. Procurei não me fixar a que altura nem a que distância da porta.
     Sinto um pouco de alívio , mas não quero nem passar pela rua México.


Jorge Luís Borges

21/07/2017

Não leve flores


Não cante vitória muito cedo não
nem leve flores para a cova do inimigo
que as lágrimas dos jovens são fortes
 como um segredo
podem fazer renascer um mal antigo
 
Tudo poderia ter mudado sim
pelo trabalho que fizemos tu e eu
mas o dinheiro é cruel e o vento forte
levou os amigos para longe das conversas
dos cafés e dos abrigos
e nossa esperança de jovens não aconteceu
 
Palavras, sons, são meus caminhos
e eu sigo sim, faço o destino
com o suor de minha mão
Bebi, conversei com os amigos
ao redor de minha mesa
e não deixei meu cigarro se apagar
pela tristeza, sempre é dia de ironia
no meu coração
 
Tenho falado a minha garota
meu bem, difícil é saber o que acontecerá
Mas eu agradeço ao tempo,
o inimigo eu já conheço
sei seu nome, sei seu gosto,
residência, endereço
A voz resiste, a fala insiste, você me ouviu?
a voz resiste, a fala insiste,
quem viver verá!

Belchior, cantor e compositor cearense


18/07/2017

Nelson Mandela - 1918-2013 *



 
"O homem que tira a liberdade de outro homem é um prisioneiro do ódio, está aprisionado atrás das barras do preconceito e da estreiteza de espírito. Não serei completamente livre se tirar a liberdade de outrem, e, com certeza, também não serei livre se a minha liberdade me for retirada. Tanto o oprimido
quanto o opressor são privados da sua humanidade. Para ser livre não basta
apenas as correntes de alguém, mas viver de uma forma que se respeite e
melhore a liberdade dos outros".
 
 
Nelson Mandela

* Se ainda estivesse entre nós, hoje estaria completando 100 anos! 


11/07/2017

Manifesto antropófago (trechos)

Só a antropofagia nos une. Economicamente. Filosoficamente.
 
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos
os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
 
Tupi, or not tupi that is the question.
 
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
 
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
 
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano
informará.
 
Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a
hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No
país da cobra grande.
 
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável
da vida.
 
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos
Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
 
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita
lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o
dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
 
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
 
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu na terra de Iracema, -
o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
 
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D.João VI:
- Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça!
Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações
e o rapé de Maria da Fonte.
 
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias
do matriarcado de Pindorama
 
 
Oswald de Andrade (1890-1954)
Em Piratininga
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. - 1928 
Em Obras completas-6

03/07/2017

Congresso Internacional do Medo

Jackson Pollock
 
 

 
Porque há para todos nós um problema sério...
 
Este problema é o do medo.
 
Antônio Cândido

 
 
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
 
***
 
Nosso tempo
 
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
 
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
 
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal, são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir. 
 
Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
 obscenos gestos avulsos.
[...]
 
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco
[...]
 
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.
 
Carlos Drummond de Andrade