DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

27/01/2018

E o sol, sem Pátria, se espalha no cimento...

 

 


Corpo de delito
 
I
 
Escuta o rumor nas margens plácidas
feitas de lama, sangue e memória.
Escuta o brado retumbante
na garganta do túnel.
Por entre as grades do grito
o céu da liberdade viaja
e o sol, sem Pátria, se espalha
nesse instante, no cimento.
 
Aqui, senhor, tememos
o braço forte que sobre os seios
se abate, sem remorso.
Aqui, no peito, os sussurros do coração
o muro de murros desabado
os urros na boca do corpo de entulho
e os erros da minha mão
que apalpa a própria morte.
 
Nesta cela que sonho nenhum
se escreve nas paredes
nesta sala de azulejos lívidos
um raio de dor sempre aceso
e vívido à terra desce.
O céu é o sol desta luz
em cada nervo
e em cada um de nós
um límpido incêndio resplandece.
 
Daqui escuto os passos dos gigantes
pisando, impávidos, a paisagem.
Escuto a marcha dos colossos
por cima dos ossos
por cima dos mapas de mar e grama
escuto as botas dos passos
nas poças do corredor
cada vez mais próximos
dos calcanhares nus do meu futuro.
 
II
 
Sentado na cadeira do dragão
largado no berço profundo do chão
sobre o som do mar o céu fulgura
com o seu sol elétrico
que não cessa
o curto, o choque, o surto
em chamas do dia iluminado
nos porões iniciais de um Novo Mundo.
 
As flores que aqui gorjeiam
garridas, em suas jaulas
se agarram na beira da vida
que cisma e insiste
e continua avançando
por entre vadias várzeas e charcos
e exclama e se espanta
como a primeira palmeira brusca
que busca o espaço
no bosque de fumaça do horizonte.
 
Onde está você, amor eterno
que não drapeja no vento
sua flâmula trêmula de estrelas?
Onde o verde-louro, o céu de anil e mel
o lábaro, a labareda de pano
que o látego rasga e marca?
Onde a glória do passado
se o presente é este furo
 de bala na pele do futuro?
 
Mas se ergues, ainda sim
a clava forte do seu corpo
e não foge à luta
nem teme a própria morte
que avança armada até os dentes
verás os raios fúlgidos
do sol da liberdade no céu
e neste chão de terra que se ama!
 
Armando Freitas Filho, Rio de Janeiro, 1940-
Vencedor dos prêmios Jabuti, Alphonsus de Guimaraens, Portugal Telecom.
 
*****
 
Poema do aviso final
 
É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.
É preciso que alguma coisa atraia
a vida
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
e abrirá caminhos.
É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade se afirmará
a machadadas.
 
Torquato Neto, Teresina(PI), 1944-1972; poeta, jornalista, letrista de músicas, criador do Movimento tropicalista, não deixou livros publicados. Seus poemas foram reunidos postumamente em duas coletâneas: Os últimos dias de Paupéria, e Torquatália: do lado de dentro.


18/01/2018

Por onde anda a memória?

Arlindo Daibert


O poeta já disse que "a imaginação é a memória que enlouqueceu", mas às vezes ficamos tão loucos que perdemos a memória, perdemos a visão completa das coisas - tudo em branco - tudo escuro - tudo em sépia.
O vozerio das gentes, as gargalhadas dissonantes: tudo
é silêncio. O coração é rio seco por onde passava aquela
ponte, hoje safenada de dor e tristeza. Caminha-se por veredas à procura do sol e das estrelas no firmamento, e então, ouve-se ao longe a voz de outro poeta a dizer que
"o poeta é um fingidor". E eu, que não sou nem uma coisa nem outra, posso dizer abertamente que as estrelas continuam suspensas e brilhantes lá no alto! Cá embaixo procuro no chão que piso essa "memória enlouquecida"!

***
 
Páginas
 
Oitenta publiquei e duzentas:
Cinquenta, por passar, trezentas
A cadernos novos, tenho outras;
Quinhentas e trinta hão completar:
E mais esta com que não conto,
Por não estar perfeito o ponto!
 
Só eu poderei ler o que escrever;
já, pela cor da tinta que servi,
já, pela minha nova ortografia,
já, por desprezar caligrafia
 
 
Minha Pátria
 
Que! eu tenho pátria?
- Talvez esteja
Este mundo inteiro;
- Pátria seja!
Hoje estou - velho barão;
e aclamo-me Campos Leão.
 
Qorpo Santo (José Joaquim de Campos Leão) Nasceu em Triunfo(RS) em 1829 e faleceu em Porto Alegre em 1883.
Poeta, dramaturgo, jornalista e tipógrafo.

14/01/2018

Pois é,

Abdias do Nascimento
 

Existem abismos que nos fazem criar; outros que nos paralisam. Pode ser, e também pode não ser, isto é, não quero dizer... Vive-se como se pode: na fossa, no fosso, no precipício - por um triz, ou por um fio de arame ou fio elétrico!
Na casa da noite aloja-se  a rede dos dias pendurados em armadores. São eles que sustentam o lento caminho da vida. Na casa da noite faz-se e desfaz-se o sonho conservado no éter.
De pés descalços, sob uma pele inviolável germinam lagartos, arremedos de insetos; quem sabe vagalumes pairem sobre o telhado dessa casa. Quem sabe?

07/01/2018

Só rindo...!


 
 

                   O riso moderno existe para mascarar a perda de sentido. É mais indispensável que nunca. Outrora,   ele
estancava as insuficiências, os defeitos - emplastro que se
colava sobre as pequenas chagas da existência. Agora, é a
própria existência que está ferida. Só o riso injetado em alta
dose, pode mantê-la com vida artificial, sob perfusão. Sejamos honestos: a humanidade ri amarelo e não somente
porque a metade de seus membros é oriental.A explosão do
riso no ano 2000 foi menos um grito de entusiasmo do que o clamor de um mundo que procura ter segurança fazendo barulho no escuro.
É inútil voltar à lista de males e catástrofes que se abatem sobre os sete bilhões de indivíduos que gesticulam desesperadamente sobre este minúsculo planeta, os quais nem sequer sabem por que estão aqui e só têm um objetivo
- passar o tempo como podem, jogando futebol, escrevendo
livros, fazendo aumentar a cifra dos negócios de uma empresa, cultivando seu jardim, completando a volta ao mundo ou assistindo à televisão - qualquer coisa, enquanto esperam o fim, que os progressos da medicina não cessam de retardar. Uma motivação é avançada, certamente:
preparar o mundo para a geração seguinte, que fará o mesmo pela seguinte e assim por diante.  Mas  o  que importa? Nenhum de nós verá isso! Essa verdade é insuportável, e só o riso permite suportar o insuportável, disfarçando-o, zombando dele, brincando. O riso é indispensável porque, mais do que nunca, estamos diante do vazio. Breve, todas as pessoas terão um telefone celular e um site da web; cada um poderá saber tudo sobre cada um, satisfazer virtualmente todas as suas fantasias - e com
isso só abraçará melhor o vazio.

 
Georges Minois, historiador francês, em História do Riso e do Escárnio - Editora UNESP

05/01/2018

Nem que a vaca tussa!




O bicho já está podre, sentimos o mau cheiro a mil léguas de distância! Os urubus já sobrevoam nas cercanias, mas ele, o bicho, entupido de carniça, todo inchado, faz de conta que está ótimo. E como o bicho sabe que já não tem mais nada a perder, continuará a destilar todo o seu veneno até os seus últimos estertores! Os urubus e outras aves de rapina que fazem parte do seu séquito, o acompanharão até
o final nesse cortejo fúnebre, na esperança de extrair o máximo proveito.

"O que é do homem, o bicho, não come"!