Corpo de delito
I
Escuta o rumor nas margens plácidas
feitas de lama, sangue e memória.
Escuta o brado retumbante
na garganta do túnel.
Por entre as grades do grito
o céu da liberdade viaja
e o sol, sem Pátria, se espalha
nesse instante, no cimento.
Aqui, senhor, tememos
o braço forte que sobre os seios
se abate, sem remorso.
Aqui, no peito, os sussurros do coração
o muro de murros desabado
os urros na boca do corpo de entulho
e os erros da minha mão
que apalpa a própria morte.
Nesta cela que sonho nenhum
se escreve nas paredes
nesta sala de azulejos lívidos
um raio de dor sempre aceso
e vívido à terra desce.
O céu é o sol desta luz
em cada nervo
e em cada um de nós
um límpido incêndio resplandece.
Daqui escuto os passos dos gigantes
pisando, impávidos, a paisagem.
Escuto a marcha dos colossos
por cima dos ossos
por cima dos mapas de mar e grama
escuto as botas dos passos
nas poças do corredor
cada vez mais próximos
dos calcanhares nus do meu futuro.
II
Sentado na cadeira do dragão
largado no berço profundo do chão
sobre o som do mar o céu fulgura
com o seu sol elétrico
que não cessa
o curto, o choque, o surto
em chamas do dia iluminado
nos porões iniciais de um Novo Mundo.
As flores que aqui gorjeiam
garridas, em suas jaulas
se agarram na beira da vida
que cisma e insiste
e continua avançando
por entre vadias várzeas e charcos
e exclama e se espanta
como a primeira palmeira brusca
que busca o espaço
no bosque de fumaça do horizonte.
Onde está você, amor eterno
que não drapeja no vento
sua flâmula trêmula de estrelas?
Onde o verde-louro, o céu de anil e mel
o lábaro, a labareda de pano
que o látego rasga e marca?
Onde a glória do passado
se o presente é este furo
de bala na pele do futuro?
Mas se ergues, ainda sim
a clava forte do seu corpo
e não foge à luta
nem teme a própria morte
que avança armada até os dentes
verás os raios fúlgidos
do sol da liberdade no céu
e neste chão de terra que se ama!
Armando Freitas Filho, Rio de Janeiro, 1940-
Vencedor dos prêmios Jabuti, Alphonsus de Guimaraens, Portugal Telecom.
*****
Poema do aviso final
É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.
É preciso que alguma coisa atraia
a vida
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
e abrirá caminhos.
É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade se afirmará
a machadadas.
Torquato Neto, Teresina(PI), 1944-1972; poeta, jornalista, letrista de músicas, criador do Movimento tropicalista, não deixou livros publicados. Seus poemas foram reunidos postumamente em duas coletâneas: Os últimos dias de Paupéria, e Torquatália: do lado de dentro.
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