DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

16/02/2018

 

houve dias, há dias em que a covardia é a única
nudez possível. Há dias como hoje
em que a pátria, embora continue sendo o último refúgio
dos canalhas, é sobretudo
um destino (eu ia dizer feudal) da nossa tristeza.

sim, talvez uma estranha insônia nasça
desse instante em que, mais do que pernilongos
descobre-se parasitas reais
procurando sangue pela casa.

mas há dias em que a covardia é o café do poeta.
e há dias em que a poesia é o café do covarde.

e de novo, assim que o Rio e seus mendigos
tanto quanto os veranistas de Miami
acordarem ao som das panelas –
agora um tanto mais metálicas que este pequeno sol
de subúrbio – veremos do que são feitas
as palavras, de que carne nasce
o estranho fanal que move a fome.

talvez não sobre outro som além dos caminhões
nos canteiros olímpicos lembrando quão próximos
e quão far away estamos from Greece.

talvez não sobre outro som senão
(como na câmara anecoica de John Cage)
o deplorável coração do mundo.

e quando digo Grécia e digo mundo
espero não soar tão épico que não se possa
figurar a espécie de mediocridade
que elegi para não cair em desconforto.

no fim talvez queira não encontrar
um começo possível para este dia, nem torço
para que depressa se precipite noutra era geológica
ainda mais estúpida, ou menos, apenas
espero conseguir frequentar os mesmos mercados
que o resto da gente
sem olhar pro chão nem pro céu, procurando
entender o ponto médio
em que o macaco ciosamente descobriu
(não o fogo) a aspirina
 
Marcelo Reis de Mello - Curitiba(PR), 1984

Nenhum comentário:

Postar um comentário