DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/08/2018

"Ciranbeirando-me"...( !? )




Ando pelas beiradas, em forma de círculos, como numa ciranda que ora se abre em roda para dar lugar a mais um, e vez em quando se fecha para poder dançar. A roda não é da fortuna. Tampouco é um moínho de ventos. Ela gira, balança, cai, mas refaz-se porque é de muitos. E não é de ninguém. Pode haver os que supõem ser "a casa da mãe Joana", a querer modificá-la ou dirigí-la; outros a ignorá-la, passando ao largo, como se ela fosse invisível. Diria que se trata de uma roda transparente, translúcida: ora colorida, ora sombria, como a vida. Não é uma pousada, muito menos uma "casa de apoio". Quem anda pela margem não tem pretensões de ensinar a ninguém, de fazer proselitismos de qualquer natureza, até porque não creio em "salvadores" e muito menos em "milagres". Nada acontece por acaso, para tudo existe uma explicação, mesmo que não possamos entender no momento em que acontece. Não podemos entender de tudo na vida. Isso é humanamente impossível. Nem por isso temos o direito de afirmar categoricamente se algo é verdadeiro ou falso, muito menos ainda de querer que todos pensem da mesma forma, tenham todos a mesma crença ou ideologia. Respeito, eis aqui a palavra-chave para a coexistência pacífica. Nada de "invasões", seja em domicílios residenciais ou em domicílios cibernéticos. Isso é incompetência dos bárbaros da idade da pedra, que por não disporem de recursos físicos e mentais apelam para atitudes as mais absurdas possíveis. Vou tentando seguir a vida da forma que me é possível, embora às vezes, até o possível se torna impossível, faz parte da vida. Não tenho pressa, porque a vida possui seu próprio curso, segue à revelia do que programamos ou desejamos. Hoje em dia os castelos se transformaram em peças de museus que visitamos, não para enaltecê-los, mas
para que tenhamos uma visão crítica do que foram, do que fizeram à sociedade de seu tempo!

19/08/2018

De François Rabelais




"O mundo está repleto de homens sábios, mestres eruditos e vastas bibliotecas: e tenho por verdade que nem nos tempos de Platão, de Cícero ou de Papiniano houve tanta oportunidade de estudar como há hoje. [...] Vejo ladrões, carrascos
flibusteiros, taverneiros, cavalariços e que tais, a própria escória da plebe, mais eruditos que os doutores e pregadores do meu tempo."

François Rabelais nasceu nas proximidades de Chinon (França) em 1494. Sua casa era chamada de "La devinière" ou A adivinha; o nome original era Les cravandières - de cravant, "ganso selvagem". Os gansos eram usados para prever o futuro. Adivinhadores ou não, o fato é que esse pequeno trecho escrito por Rabelais continua atualíssimo mesmo decorridos cinco séculos! Nesses tempos bicudos, no auge da virtualidade sem nenhuma virtude, quantos arautos
e donos da verdade têm proliferado, quantos leitores de "orelhas de livros" se consideram intérpretes de obras complexas; quantos "âncoras" vêm tentando afundar o navio da nossa história a partir de falsas notícias? 
Rabelais sabia latim, grego, italiano, hebraico, árabe e vários dialetos franceses;
estudou teologia, direito, medicina, arquitetura, botânica, arqueologia e astronomia; enriqueceu a língua francesa com mais de oitocentas palavras, muitas delas ainda usadas na academia canadense. É autor de Gargantua e Pantagruel, Fatos e ditos heroicos do Bom Pantagruel (4 volumes).

12/08/2018

Da violência contra a mulher negra







Maria

Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. Os ônibus estavam aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir o nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos gostavam de melão?
A palma de umas de suas mãos doía. Tinha sofrido um corte, bem no meio, enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa! Faca-laser corta até a vida!
Quando o ônibus apontou lá na esquina, Maria abaixou o corpo, pegando a sacola que estava no chão entra as suas pernas. O ônibus não estava cheio, havia lugares. Ela poderia descansar um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quando tempo, que saudades! Como era difícil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem assentou-se ao lado dela. Ela se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai do seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de outra forma? Por que não podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que sinto falta de vocês? Tenho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também! Homens também? Eles haveriam de ter outra vida. Com eles tudo haveria de ser diferente. Maria, não te esqueci! Tá tudo aqui no buraco do peito...
O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com Maria as palavras, sem entretanto virar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida. Do buraco-saudade no peito dele... Desta vez ele cochichou um pouquinho mais alto. Ela, ainda sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E logo após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida dos seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto no ônibus. Imaginava o terror das pessoas. O comparsa de seu ex-homem passou por ela e não pediu nada. Se fossem outros os assaltantes? Ela teria para dar uma sacola de frutas, um osso de pernil e uma gorjeta de mil cruzeiros. Não tinha relógio algum no braço. Nas mãos nenhum anel ou aliança. Aliás, nas mãos tinha sim! Tinha um profundo corte feito com faca-laser que parecia cortar até a vida.
Os assaltantes desceram rápido. Maria olhou saudosa e desesperada para o primeiro. Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra voz ainda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê. Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que relembrava vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção a Maria. O motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: Calma, pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos gostam de melão?
Tudo foi tão rápido, tão breve. Maria tinha saudades do seu ex-homem. Por que estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, um carinho no filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam todos armados com facas-laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo pisoteado.
Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho.
(Olhos d'água p. 39-42).

Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte (MG). É mestra em Literatura Brasileira e doutora em
Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. É autora de Ponciá Vicêncio, Becos da Memória, Insubmissas lágrimas de mulheres, Olhos
d'água(contos), Histórias de leves enganos e parecenças, Poemas da recordação e outros movimentos.

06/08/2018

As Catilinárias de Cícero




Até quando, Catilina, abusarás
da nossa paciência?
Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós?
A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia?
Nem a guarda do Palatino,
nem a ronda noturna da cidade,
nem o temor do povo,
nem a afluência de todos os homens de bem,
nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado,
nem a expressão do voto destas pessoas, nada disto conseguiu perturbar-te?
Não te dás conta que os teus planos foram descobertos?
Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem?
Quem, dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste?
Oh tempos, oh costumes!


As Catilinárias de Cícero são uma série de quatro discursos pronunciados por Marco Túlio Cícero, cônsul do senado romano em 63 a.C.
O primeiro e o último destes discursos foram dirigidos ao senado de Roma; os outros dois foram proferidos diretamente ao povo romano. Todos quatro foram compostos para denunciar explicitamente o senador Lúcio Sérgio Catilina, que planejava com seus seguidores, derrubar o governo republicano para obter riqueza e poder.

Marco Tulio Cícero advogado, orador, escritor e filósofo romano (63 a.C.- 43 a.C.). Foi morto e esquartejado: suas mãos e sua cabeça foram exibidas no Fórum Romano, por ordem do imperador
Marco Antônio, seu inimigo político.