DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/07/2020

Fragmentos de escrita





Escrever e morrer. Morrer e não escrever?
A chuva cai sobre a terra; suas águas placentárias
semeiam sobre um solo arrasado tufões imprevisíveis.
Escrever para não morrer, para acalmar o desespero
da palavra; pelo simples prazer de reconhecer-se inacabado, incompleto, imperfeito. A busca constante pelo lado oposto e os outros lados possíveis da vida -
a busca pelo o que é diferente, diverso.
Fragmentos que surgem para dar algum sentido aos abismos insurgentes entre o ser e o nada. 

24/07/2020

Dos recicladores de vidas




Aqui temos um homem - ele tem que recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis e agradáveis.

Walter Benjamin, filósofo, ensaísta e crítico literário, nasceu em Berlim em 1892 e faleceu em 1940.

16/07/2020

Noitário

Abaporu, Tarsila do Amaral


Um rio de águas turvas atravessa a noite das cidades. Corpos inanimados são levados pela correnteza das corredeiras; redemoínhos que deságuam em labirintos escondem as vítimas de uma tragédia anunciada. Todos estão à deriva neste barco cujo timoneiro é desprovido de sanidade.
Com um caco de vidro preso entre os dedos e um tinteiro de sangue, a mão se retorce tentando alongar-se para melhor desenhar as palavras; nas paredes do quarto onde vive uma solidão silábica, muralhas de vocábulos e frases espreitam os corpos que desfilam ao som de uma marcha fúnebre rumo ao Hades. O texto alonga-se para não ser embalsamado como aqueles mortos na horizontal. Cochichos pelos cantos, censuras veladas a exigirem dele mais compostura, mais elegância. Ele finge que dorme; a noite já vai alta.
Lá fora respingam as primeiras gotas de orvalho anunciando o amanhecer de um novo dia.

10/07/2020

Da Saudade





dos bandos de borboletas que nasciam
casulos e voavam à procura
do mel das abelhas;
do canto dos pássaros nos jardins
melros bem-te-vis e sabiás;
das tartarugas que enterravam
seus ovos na praia e depois
corriam para o mar;
das bibliotecas com seus corredores
labirintos silenciosos repletos
de prateleiras de livros que
nos sussurravam palavras saídas
do bico dourado de um papagaio
dando asas à imaginação;
do marulhar das ondas
do mar
e dos barcos ao longe
que nos levavam a uma ilha
desconhecida...
Ah, saudade.

06/07/2020

A uma passante


A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz...e a noite após! -
Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez.
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

Charles Baudelaire