Abaporu, Tarsila do Amaral
Um rio de águas turvas atravessa a noite das cidades. Corpos inanimados são levados pela correnteza das corredeiras; redemoínhos que deságuam em labirintos escondem as vítimas de uma tragédia anunciada. Todos estão à deriva neste barco cujo timoneiro é desprovido de sanidade.
Com um caco de vidro preso entre os dedos e um tinteiro de sangue, a mão se retorce tentando alongar-se para melhor desenhar as palavras; nas paredes do quarto onde vive uma solidão silábica, muralhas de vocábulos e frases espreitam os corpos que desfilam ao som de uma marcha fúnebre rumo ao Hades. O texto alonga-se para não ser embalsamado como aqueles mortos na horizontal. Cochichos pelos cantos, censuras veladas a exigirem dele mais compostura, mais elegância. Ele finge que dorme; a noite já vai alta.
Lá fora respingam as primeiras gotas de orvalho anunciando o amanhecer de um novo dia.
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