DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

24/12/2020

Canto Final ou Agonia de uma Noite Infecunda

 Como a flor cortada rente e desfolhada

ou os olhos vazados da criança

e o seu fio de pranto tênue e impotente

assim a noite caminha com os astros todos em vertigem

até que se atinge o ponto da mudez

a pesada mó triturando a sílaba

a garganta com as cordas dilaceradas

e uma lâmina ácida e pontiaguda enterrada ao nível da carótida


Entenda-se isto como noite e o seu transe derradeiro

tanto assim que a flor desfeita

não embala o coração do poeta

oh não

porque a flor defunta

se voa

não sobe nunca

e só dura

o espaço breve duma nota


Assim o canto se detém imóvel como se a flauta

falhando súbito

na boca do poeta

ficasse o hiato

ou a saliva

de um tempo devassado por insectos cor de cinza


A voz suspensa e negada

cede a vez à letra amorfa

inscrita no silêncio

com seu peso

de chumbo e olvido acaba o poema

e um ponto final selando tudo.


Armênio Vieira, jornalista, e poeta ganhador do Prêmio Camões, nasceu em Cabo Verde, em 1941.

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