No rés do chão, sob nossos pés habitam seres invisíveis e destrutíveis: os vermes. São a representação e a vociferação da linguagem inferior; o subproduto humano. Macaqueiam sem ser macaco, papagueiam sem ser papagaio. Verme é o nome comumente atribuído a todos os animais invertebrados, com exceção dos insetos. Na espécie humana, o verme é uma pessoa infame e desprezível que habita entre nós de maneira invisível, escorregadia e disfarçada. Circunavega mares, arcos e charcos pantanosos do viver. E quando cai a noite iluminada por uma multidão de estrelas cadentes trazidas pelo vento, nossos olhos, ainda que embaçados pela poeira, juntam-se a ela para sair da escuridão
DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)
28/03/2021
21/03/2021
Ao Mar
mar tenebroso e sereno
meu coração já não suporta
tamanha dor;
quando contigo sonhava
via castelos e mistérios
hoje vislumbro silêncios
e solidão
Agita-nos!
nossos olhos inundados
cristais de pedras na boca
rochedos de sentimentos
desmoronam
face a tua impetuosidade:
quebra-os
tritura-os
para que voltemos a ver-te
um mar sereno, e melodioso;
banha-nos salga-nos
e nos renova outra vez!
13/03/2021
Das cinzas
Na penúltima hora do último dia de nossas vidas será encontrado um saco cheio de palavras desusadas, deterioradas, misturadas com alguns embriões sobre os ombros de um anônimo caboclo sertanejo: aquele que jamais teve voz nem vez; de olhos arregalados de fome percorre um caminho sob o peso do silêncio, temendo perder sua identidade. A chuva, os rios e peixes, a densa floresta, berço das plantações de feijão, arroz, milho, tudo em vias de extinção. Ele e os seus, tragados e sufocados por esse imenso saco de pandora. Lá fora passa uma noite morna e lenta, sufocante e sem estrelas, enquanto pelo meu corpo escorre um suor quente e salgado; do sangue nas veias por lâminas cortado, transbordam rios de palavras repetidas ad eternum. Acaricio meus cabelos numa tentativa de ativar meus neurônios; não há qualquer resquício de brisa, o vento foi soprar na boca do vulcão, que enfurecido, engole, devora todas as palavras até transformá-las em cinza, para que renasçam outra vez.
08/03/2021
Um fio de conto
Caminhando pelas ruas da linguagem deu-se conta de que embora andasse por elas desde muito cedo, pareciam-lhe estranhas, não conseguia decifrá-las; às vezes passava dias num silêncio sem fim; voz e corpo desencontrados coabitando as mesmas palavras, partilhando o mesmo alfabeto, os mesmos sonhos atravessados na garganta. Tentava entender a linguagem dos pássaros, - onde estaria a sua? Por que balbuciava sempre a mesma coisa? As ruas da linguagem, dizia para si, são amplas como as de uma avenida, costumam ter mão dupla. Ao girar a cabeça percebeu que estava numa encruzilhada que se bifurcava em várias ruelas estreitas, de mão única. E aquela mão tinha dedos longos como galhos secos, sem folhas: era um livro de muitas estórias, de páginas avulsas espalhadas pelo chão. Soprava um vento forte, as folhas voavam para o alto, em todas as direções, como se quisessem alcançar os pássaros. E voavam as páginas, as palavras, as estórias, os pássaros e os sonhos contidos naquela mão que a conduzia para um labirinto.
03/03/2021
Prometeu *
Sobre Prometeu dão notícia quatro lendas: Segundo a primeira, ele foi acorrentado no Cáucaso porque havia traído os deuses aos homens, e os deuses remeteram águias que devoravam seu fígado que crescia sem parar. De acordo com a segunda, Prometeu, por causa da dor causada pelos bicos que o picavam, comprimiu-se cada vez mais fundo nas rochas até se confundir com elas. Segundo a terceira, no decorrer dos milênios sua traição foi esquecida, os deuses se esqueceram, as águias se esqueceram, ele próprio se esqueceu. Segundo a quarta, todos se cansaram do que havia se tornado sem fundamento. Os deuses se cansaram, as águias se cansaram, a ferida, cansada, fechou-se. Restou a cadeia inexplicável de rochas. A lenda tenta explicar o inexplicável. Uma vez que emerge de um fundo de verdade, ela precisa terminar de novo no que não tem explicação.
Franz Kafka, Praga(Tchecoslováquia) 1883-1924.