DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

24/11/2021

Dois poemas




Capricho


Por trás de cada espelho

há uma estrela morta

e um arco íris menino que dorme.

Por trás de cada espelho

há uma calma eterna

e um ninho de silêncios

que não voaram.

O espelho é uma múmia

do manancial, se fecha

como concha de luz,

através da noite.

O espelho

é a mãe-orvalho,

o livro que deseja

os crepúsculos, o eco feito carne.

(Federico Garcia Lorca, 1898-1936 - Granada, Espanha)


*****


Quero o poema

terra-a-terra,

o poema raso,

o poema vil,

o poema vivo,

o poema-víbora,

o poema

fácil e fatal,

louco e lindo

feito o bem sobre o mal.

(Alberto da Cunha Melo, Jaboatão dos Guararapes-PE, 1942-2007)

15/11/2021

Para quebrar a cabeça



1 - Com os pés na lama, as mãos na chama, buscava a fama. Onde estaria o fogo?


2 - Armou a barraca, deitou-se numa rede, e caiu do cavalo: a dama era de espadas!


3 - O rio Negro encontrou-se com o Mar da Prata: estava formada a pororoca.


4 - O sal que caía dos olhos temperou o feijão, e da panela saltaram profundos olhos escuros: o dia anoiteceu.


5 - Mamou, mamou até cair na vala comum dos empanturrados; era o dono da corda, mas não conseguiu manter a cabeça.


6. O mar ainda tem muitos peixes; os maiores engolem os menores. Quem engole os tubarões?

11/11/2021

Tanto mar



Quando o mar não quebra na praia, mais cedo ou mais tarde arrebentará com muito mais força na sua orla; torrentes de ondas tormentosas surgirão de forma avassaladora e inesperada, destruindo o que estiver à frente dele. O vento que sopra sobre as areias do deserto, e a poeira que  alevanta, forma miragens visuais. O seu canto nos lembra as antigas e traiçoeiras sereias que tentaram iludir Ulisses em sua odisseia.  Assim como o mar, as ondas cerebrais vão e vêm, mas quando arrebentam não têm volta: transformam-se em curtos circuitos, queimam e ficam desconectadas, provocando distúrbios mentais, desequilíbrios sociais.                                                                          Tanto mar, tanto amor, e tantas ilhas de ódio a dividir continentes humanos...!

08/11/2021

De Machado de Assis

 



" - O mundo, (...) é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira".

Extraído conto Ideias do canário

04/11/2021

De Sophia de Mello Breyner Andresen




Mar


Mar, metade da minha alma é feita de maresia

Pois ela é pela inquietação e nostalgia,

Que há no vasto clamor da maré cheia,

Que nunca nenhum bem me satisfez

E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia,

Mais fortes se levantam outra vez,

Que após cada queda caminho para a vida,

Por uma nova ilusão,

Entontecida.


E se vou dizendo aos astros o meu mal

É porque também tu revoltado e teatral,

Fazes soar a tua dor pelas alturas,

E se antes de tudo odeio e fujo

Do que é impuro, profano e sujo,

É só porque as tuas ondas são puras.


Inscrição


Quando eu morrer voltarei para buscar

Os instantes que não vivi junto do mar.



Este é o tempo


Este é o tempo

Da selva mais obscura


Até o ar azul se tornou grades

E a luz do sol se tornou impura


Esta é a noite

Densa de chacais

Pesada de amargura


Este é o tempo em que os homens renunciam.


Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu na cidade do Porto (Portugal) - 1919-2004.