DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)
29/05/2022
22/05/2022
Indagações
Albrecht Dürer
Sentada diante de uma tela em branco tento extrair minúsculas partículas de lucidez para preencher esse vazio que vem insistindo em instalar-se em meu cérebro. Um vazio que surge quando quase tudo já transbordou, ultrapassou os limites do que é possível, porque o vazio, quando excede, enche! Nada, não sai nada; mesmo vendo, sentindo na minha própria carne, na tua, na de milhões de pessoas que habitam essa terra, a carência de alimentos, a fome, a falta de moradias, de saúde, de educação, de bem-estar, de uma vida digna. Uma mistura de sentimentos contraditórios dialogam, e ao mesmo tempo divergem dentro de mim: impotência, medo, covardia, ou hipocrisia ou comodismo? Essa aparente diversidade de sentimentos tem, paradoxalmente, me deixado sentada diante, e não à beira da indiferença. Continuarei indagando enquanto não sair deste labirinto...
16/05/2022
Um poema de Linda Pastan *
Estou aprendendo a abandonar o mundo
antes que ele me abandone.
Já desisti da lua
e da neve fechando minhas cortinas
contra as reivindicações do branco.
E o mundo levou
meus pais, meus amigos.
Abandonei as linhas melódicas das colinas,
passando para uma paisagem plana, desafinada.
E todas as noites eu desisto do meu corpo,
membro por membro, em movimentos ascendentes
através dos ossos, em direção ao coração.
Mas a manhã chega com os pequenos
adiamentos do café, e do canto dos pássaros.
Uma árvore do lado de fora da janela,
que há pouco era apenas uma sombra,
recuperou seus galhos frondosos
ramo por ramo.
E enquanto eu retomo o meu corpo,
o sol pousa mansamente em meu colo
como se quisesse fazer as pazes.
* Linda Pastan é uma poeta norte-americana de origem judia. Nasceu em Nova York, em 1932. No próximo dia 29 de maio completará noventa anos! Já publicou 15 livros de poemas.
09/05/2022
Nem, nem...
Faz frio, mas está quente. Há risos, enquanto todos choram. Um corte no céu; da boca abre-se um rio de lamentos que repercutem pelas costas das encostas. Não cheguei, nem parti. Fui esquadrinhada, esquartejada. Quadricularam-me em bolhas de sabão, e por isso vivo escorregando em cascas de bananas. As bananeiras não têm galhos, mas os macacos vivem pulando, jogando suas cascas para que escorreguemos.
04/05/2022
O medo
Man Ray
Porque há para todos nós um problema sério...Este problema é o do medo
Antonio Cândido, Plataforma de uma geração.
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
de nós, de vós: e de tudo. Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivéssemos?
Vem, harmonia do medo,
vem, ó terras das estradas,
susto na noite, receio de águas poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.
Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.
Carlos Drummond de Andrade, em A rosa do povo