DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

04/05/2022

O medo

 Man Ray




Porque há para todos nós um problema sério...Este problema é o do medo

Antonio Cândido, Plataforma de uma geração.


Em verdade temos medo.

Nascemos escuro.

As existências são poucas:

Carteiro, ditador, soldado.

Nosso destino, incompleto.


Cheiramos flores de medo.

Vestimos panos de medo.

De medo, vermelhos rios

vadeamos.


Somos apenas uns homens

e a natureza traiu-nos.

Há as árvores, as fábricas,

doenças galopantes, fomes.


Refugiamo-nos no amor,

este célebre sentimento,

e o amor faltou: chovia,

ventava, fazia frio em São Paulo.


Fazia frio em São Paulo...

Nevava.

O medo com sua capa,

nos dissimula e nos berça.


Fiquei com medo de ti,

meu companheiro moreno,

de nós, de vós: e de tudo. Estou com medo da honra.


Assim nos criam burgueses.

Nosso caminho: traçado.

Por que morrer em conjunto?

E se todos nós vivéssemos?


Vem, harmonia do medo,

vem, ó terras das estradas,

susto na noite, receio de águas poluídas. Muletas


do homem só. Ajudai-nos,

lentos poderes do láudano.

Até a canção medrosa se parte, se transe e cala-se.


Faremos casas de medo,

duros tijolos de medo,

medrosos caules, repuxos,

ruas só de medo e calma.


E com asas de prudência,

com resplendores covardes,

atingiremos o cimo

de nossa cauta subida.


O medo, com sua física,

tanto produz: carcereiros,

edifícios, escritores,

este poema; outras vidas.


Tenhamos o maior pavor.

Os mais velhos compreendem.

O medo cristalizou-os.

Estátuas sábias, adeus.


Adeus: vamos para a frente,

recuando de olhos acesos.

Nossos filhos tão felizes...

Fiéis herdeiros do medo,


eles povoam a cidade.

Depois da cidade, o mundo.

Depois do mundo, as estrelas,

dançando o baile do medo.


Carlos Drummond de Andrade, em A rosa do povo 

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