DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/07/2022

É sempre bom lembrar que...




" o tirano nunca ama e nunca é amado. A amizade é um sentimento sagrado, uma coisa santa. Só existe entre pessoas de bem. Nasce da estima mútua e se alimenta não tanto dos benefícios quanto dos bons costumes. O que dá a um amigo a certeza da amizade do outro é o conhecimento de sua integridade. Tem como garantias sua bondade natural, sua fidelidade, sua constância. Não pode haver amizade onde se encontrem a crueldade, a deslealdade, a injustiça. Quando os maus se reúnem há uma conspiração, não uma sociedade. Não se amam, mas se temem. Não são amigos, mas cúmplices. Mas, mesmo que não fosse assim, seria difícil encontrar um amor sincero num tirano, porque, estando acima de todos e não tendo companheiros, já estaria além dos limites da amizade. Esta floresce na igualdade, desenvolve-se sempre igual e nunca pode falhar. É por isso que existe, como dizem, uma espécie de boa-fé entre os ladrões no momento de repartir o butim, porque então todos são iguais e companheiros. Embora não se amem, pelo menos se temem. Não querem, com sua desunião, diminuir sua força. Mas os favoritos de um tirano nunca podem contar com ele, porque aprenderam que pode tudo, que nenhum direito nem dever o obriga, que está acostumado a não ter nenhuma lei além de sua própria vontade, e nenhum companheiro, por ser senhor de todos. Não é lamentável que, com tantos exemplos evidentes, sabendo que o perigo, está tão presente, ninguém queira aprender a lição das misérias de outros e que tantas pessoas se aproximem ainda tão naturalmente dos tiranos? "


Étienne de La Boétie, filósofo, poeta e escritor francês (1530-1563), em " Discurso da servidão voluntária". 

25/07/2022

Do esquecimento

 




Mundus vult decipi, ergo decipiatur!" ou 

"O mundo quer ser enganado, pois que o seja!"


Ai! Ai! O homem não é mais que um sopro de vento; é menos que uma mosca, pois esse inseto, pelo menos, tem certa consistência, enquanto nós não passamos de bolhas d'água. 

[...]

Onde o ouro é todo-poderoso, de que servem as leis?

Se não tem dinheiro, o pobre perde seus direitos.

O cínico, que é tão frugal e severo em público,

secretamente negocia com a verdade.

Até mesmo Têmis se vende e, em seu tribunal,

a balança pende conforme o vil metal.

[...]


O homem nada mais é que um sopro.

E a trama de seus anos é curta e frágil.

O túmulo segue nossos passos; cabe a nós,

sabiamente, usar o prazer para embelezar,

o mais que pudermos, os nossos instantes.


Petrônio ou Caius Petronius Arbiter, (c. 27-66.C.) em Satíricon. De família rica e aristocrática, Petrônio foi governador e conselheiro do imperador romano Nero. Durante o dia dormia e à noite entregava-se aos deveres e aos prazeres. " O ambiente de Petrônio é o das nossas grandes capitais, da nossa "alta sociedade".(Otto Maria Carpeaux).

14/07/2022

Pareça e desapareça




Parece que foi ontem.

Tudo parecia alguma coisa.

O dia parecia noite.

E o vinho parecia rosas.

Até parece mentira,

tudo parecia alguma coisa.

O tempo parecia pouco, e a gente parecia muito.

A dor, sobretudo,

parecia prazer.

Parecer era tudo

que as coisas pareciam fazer.

O próximo, eu mesmo.

Tão fácil ser semelhante,

quando eu tinha um espelho

pra me servir de exemplo.

Mas vide versa e vide a vida.

Nada se parece com nada.

A fita não coincide

com a tragédia encenada.

Parece que foi ontem.

O resto, as próprias coisas contem.


*****


O par que me parece


Pesa dentro de mim

o idioma que não fiz,

aquela língua sem fim

feita de ais e de aquis.

Era uma língua bonita,

música, mais que palavra,

alguma coisa de hitita,

praia do mar de Java.

Um idioma perfeito,

quase não tinha objeto.

Pronomes do caso reto,

nunca acabavam sujeitos.

Tudo era seu múltiplo,

verbo, triplo, prolixo.

Gritos eram os unidos, o resto ia pro lixo.

Dois leos em cada pardo.

Dois saltos em cada pulo,

eu que só via a metade,

silêncio, está tudo duplo.


Paulo Leminski - Curitiba(PR) - 1944-1989.

08/07/2022

Crepúsculo *





O claro acorda o escuro

O escuro aborta a luz

O espaço rompe os espaços

Farrapos afogam-se na solidão

A alma dança

E

Oscila e oscila

E

Estremece no espaço

Você!

Meus membros buscam-se

Meus membros tocam-se

Meus membros oscilam afundam afundam afogam-se

Na

Imensidão

Você!


O claro abosta o escuro

O escuro devora a luz

O espaço se afoga na solidão

A alma

Ferve

Ferrolha-se

Rara!

Meus membros

Giram

Na

Imensidão

Você"


O claro é luz!

A solidão sorve!

A imensidão escorre

Rasga

Me

Em você!

Você!


* August Stramm, poeta expressionista alemão, um dos fundadores da revista Der Sturm. Nasceu em Munster em 1874 e faleceu na guerra, em 1915.


 

02/07/2022

Pra lá e pra cá



Minhas mãos, meu cérebro, meus pensamentos, o mundo, a multidão, a solidão, e os meus pés, ardem sobre fagulhas de pedras pontiagudas, e furam e perfuram meu estômago, deixando-me em frangalhos... Há muitas pedras no caminho. Caminhar sobre pedras não é fácil, porque elas também caminham, imperceptivelmente, com a ajuda de ventos ou de águas turbulentas. Fecho os olhos em ondas curtas, médias e frequentes, mas não vislumbro sequer um peixe; decerto partiram em busca de outros mares, ou caíram em cadafalsos, ou guilhotinas: todos enforcados! Não sei ao certo por que me veio à cabeça imagens de pedras. Vez em quando, tenho a nítida sensação de que sou um minúsculo grão de areia, uma reles poeira carregada pelo vento. Nascer nas pedras, viver entre pedras, caminhar sobre pedras. .. Será que somos feitos de pedras? Sim e não: de pó, de água da chuva, de sal e sol e vento, de contradições, de sentimentos de amor e de ódio, de dor e prazer, de alegria e de tristeza. Enfim, somos seres vivos, às vezes humanos, noutras, nem tanto...!