DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/10/2022

Nosso tempo




Este é tempo de partido,

tempo de homens partidos.


Em vão percorremos volumes,

viajamos e nos colorimos.

                               A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.

As leis não bastam. Os lírios não nascem

da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se

na pedra.


[.....]


Esse é tempo de divisas,

tempo de gente cortada.

De mãos viajando sem braços,

obscenos gestos avulsos.

[.....]


Símbolos obscuros se multiplicam.

Guerra, verdade, flores?

Dos laboratórios platônicos mobilizados

vem um sopro que cresta as faces

e dissipa, na praia, as palavras.


[.....]


E continuamos. É tempo de muletas.

Tempo de mortos faladores

e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,

mas ainda é tempo de viver e contar.

Certas histórias não se perderam.

Conheço bem esta casa,

pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,

a sala grande conduz a quartos terríveis,

como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,...


[.....]


É tempo de meio silêncio,

de boca gelada e murmúrio,

palavra indireta, aviso

na esquina. Tempo de cinco sentidos

num só. O espião janta conosco.


[.....]


O poeta

declina de toda responsabilidade

na marcha do mundo capitalista

e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas

promete ajudar

a destruí-lo

como uma pedreira, uma floresta,

um verme.


Carlos Drummond de Andrade (31.10.1902-17.08.1987)

Em A rosa do povo, escrito entre 1943-1945.

 

28/10/2022

"Desenganos da vida humana metaforicamente" *




É a vaidade, Fábio, nesta vida,

rosa, que de manhã lisonjeada,

púrpuras mil, com ambição dourada,

airosa rompe, arrasta presumida.


É planta, que de abril favorecida,

florida galeota empavesada,

sulca ufana, navega destemida.


É nau enfim, que em breve ligeireza

com presunção de Fênix generosa,

galhardias apresta, alentos preza.


Mas, ser planta, ser rosa, nau vistosa

de que importa, se aguarda sem defesa

penha a nau, ferro, planta, tarde a rosa?


Gregório de Matos, advogado e poeta nascido em Salvador(BA), no século XVII(1636-1696), no primeiro período literário denominado barroco no Brasil. Não tinha "papas na língua", usava e abusava de metáforas e antíteses, não poupando os poderosos da época, e por isso ficou conhecido como o "Boca do inferno". Acabou sendo preso e deportado para Angola(África). Posteriormente, conseguiu sua liberdade sob a condição de nao mais voltar a residir em Salvador. Faleceu em Recife(PE).

20/10/2022

Imunidade de rebanho

 



A estupidez é sua própria recompensa.

Graças a ela o mundo faz sentido, um só, que é fácil de identificar.

E só o fácil satisfaz a quem não pensa.

Pensar dá trabalho. E dói. A ignorância é o sumo bem

dos cidadãos de bem, é a verdadeira marca dos eleitos.

Ter sucesso é não ter que saber.

Saber cansa.

Olhai as vacas do campo: não lhe faz falta a ciência,

pastam em plena bem-aventurança,

sem que nenhuma antevisão do matadouro

perturbe a santa paz da ruminança.


Paulo Henriques Britto - poeta, tradutor e professor de Literatura.

(Rio de Janeiro, 1951-     ).

15/10/2022





Uma densa nuvem de vagalumes sobrevoa os pastores da noite.                          Brasas emergem das cinzas... 

09/10/2022

Luto da Família Silva - Crônica de Rubem Braga *




Assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava morto. O cadáver foi removido para o necrotério. Na seção dos "Fatos Diversos" do Diário de Pernambuco, leio o nome do sujeito João da Silva. Morava na Rua da Alegria. Morreu de hemoptise.                                                                    João da Silva - Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os Joões da Silva. Nós somos os populares Joões da Silva. Moramos em várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não é uma família ilustre: nós não temos avós na história. Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços.         


                   Somos os Silva. Algumas pessoas importantes usaram e usam nosso nome. É por engano. Os Silva somos nós. Não temos a mínima importância. Trabalhamos, andamos pelas ruas e morremos. Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia, não usamos nosso nome de família. Usamos o sobrenome "de Tal". A família Silva e a família "de Tal" são a mesma família. E, para falar a verdade, uma família que não pode ser considerada boa família. Até as mulheres que não são de família pertencem à família Silva.           João da Silva - Nunca nenhum de nós esqueceu seu nome. Você não possuía sangue azul. O sangue que saía de sua boca era vermelho - vermelhinho da Silva. Sangue de nossa família. Nossa família, entretanto, é que trabalha para os homens importantes. A família Crespi, a família Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a família Pereira Carneiro, todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa família. Nós auxiliamos várias famílias importantes na América do Norte, na Inglaterra, na França, no Japão. A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, na mata, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha. Nossa família quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro dos Bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz de tudo.                                                               Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política...


Rubem Braga nasceu em Cachoeiro do Itapemirim(ES) e faleceu no Rio de Janeiro em 1990. Essa crônica foi escrita em 1935. Após 87 anos continua atual ! 

04/10/2022

De Jorge Luis Borges

 




Olhar o rio que é de tempo e água,

E recordar que o tempo é outro rio.

Saber que nos perdemos como o rio

E que os rostos passam como a água.


Mas a alma em meio à ruidosa monotonia da vida,

continua a ouvir uma voz que vem nos intervalos.

Continua a chorar ao ouvir uma melodia que não havia.

Continua a ouvir a fala de um estranho que vive em nós,

e que nos visita nos sonhos.