Foi uma questão muito séria que não chamou, como esperávamos, a atenção dos interessados e morreu no nascedouro. O Sr, Mário de Andrade, num dos seus excelentes rodapés do Diário de Notícias, condenou, entre amável e acrimonioso, a literatura feita à pressa, abundante nestes dias de confusão. Um dos nossos grandes homens de letras divergiu azedamente do escritor paulista. Este voltou à carga e afinal o Sr. Joel Silveira, no hebdomadário D. Casmurro, fechou a discussão rápida com uma nota curiosa que infelizmente não foi examinada pelos entendidos. Os telegramas de guerra mataram essa pendência que agora procuro desenterrar.
Em resumo, o Sr. Mário de Andrade sustentou, com citações e argumentos de peso, esta coisa intuitiva: um sujeito que se dedica ao ofício de escrever precisa, antes de tudo, saber escrever. Há tempo o Sr. Rubem Braga, num artigo curto, desprovido de citações e com poucos argumentos, tinha dito o mesmo. Isto é quase uma verdade laplaciana.
Dificilmente podemos coser ideias e sentimentos, apresentá-los ao público, se nos falta a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos não conseguem manejar a faca, a sovela, o cordel e as ilhós. A comparação efetivamente é grosseira: o cordel e ilhós diferem muito de verbos e pronomes. E expostos à venda romance e calçado, muita gente considera o primeiro um objeto nobre e encolhe os ombros diante do segundo, coisa de somenos importância. Essa distinção é o preconceito. Se eu soubesse bater sola e grudar palmilha, estaria colando, martelando. Como não me habituei a semelhante gênero de trabalho, redijo umas linhas, que dentro de poucas horas serão pagas e irão transformar-se num par de sapatos bastante necessários. Para ser franco, devo confessar que esta prosa não se faria se os sapatos não fossem precisos. Por isso desejo que o fabricante deles seja honesto, não tenha metido pedaços de papelão nos tacões. E espero também que os meus fregueses fiquem satisfeitos com a mercadoria que lhes ofereço, aceitem as minhas ideias ou pelo menos, em falta disto, alguns adjetivos que enfeitam o produto.
Evidentemente o Sr. Mário de Andrade, homem de cultura e gosto, não iria aproximar um escritor dum operário. Mas agora estou pensando nos rapazes do D. Casmurro. E não atino com a razão por que eles torceram o nariz à oponião do crítico.
Afinal, que são os rapazes do D. Casmurro? Os sapateiros da literatura. Não se zanguem, é isto. Somos sapateiros, apenas. Quando, há alguns anos, desconhecidos, encolhidos e magros, descemos das nossas terras miseráveis, éramos retirantes, os flagelados da literatura. Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, frequentamos as livrarias e os jornais, arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando.
Certamente há outros que são literatos por nomeação. Necessitamos letras, como qualquer país civilizado, e escolhemos para representá-las um certo número de indivíduos que se vestem bem, comem direito, gargarejam discursos, dançam e conversam besteira com muita suficiência.
Os rapazes do D. Casmurro, uns pobres-diabos, não sabem fazer nada disso. Peçam ao Sr. Joel Silveira ou ao Sr. Wilson Lacerda uma conferência a respeito do namoro e verão o desastre: as moças da platéia se chatearão horrivelmente.
Restam, pois, a esses desgraçados, a essas criaturas famintas as novelas e a faca miúda com que se corta o couro. Mas é preciso que a faca e as novelas sejam bem manejadas. Quando lá fora disserem: "Esta crônica está bem feita, este livro é mais ou menos legível", os autores, uns infelizes, pensarão: "Bem. Não há no mundo uma pessoa que tenha interesse em elogiar-nos. Fizemos qualquer coisa apreciável, é claro." E dormirão tranquilos um sono curto.
Enfim as novelas furam e a faca pequena corta. São armas insignificantes, mas são armas.
Graciliano Ramos, crônica publicada no livro Linhas tortas - Editora Record, 1962
Graciliano Ramos, crônica publicada no livro Linhas tortas - Editora Record, 1962
essa cê buscou no fundo do baús.
ResponderExcluirvidas eternamentes verdejantes, sob a pena deste senhor.
beijão,
r.
Os baús estão cheios de preciosidades, verdadeiras relíquias!, como essa de Graciliano Ramos, que além de excelente escritor, era uma cronista de mão cheia, sua pena era sutil, irônica e afiadíssima!
Excluirbeijos, Roberto