DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/06/2014

Astrid Cabral - Infância em franjas



 A infância não passou de todo.
Recolheu-se a um armário de
lembranças-fantasmas, de onde
às vezes escapam e me visitam.
 

 

Me apoiei numa pedra
pra poder me levantar.
(O limo me enganou)
A pedra saltou longe.
Era um baita sapo de
 olho esbugalhado em mim.
Foi um susto mútuo:
meus dedos na pele fria
fogo na cacunda dele.
Se espirrasse veneno
e eu ficasse cega?
Abalo de súbito medo
bateu-me no estômago
nojo ânsia de vômito.
Se nos contos de fada
sapos viravam príncipes
na minha experiência
pedras viravam sapos.

 

28/06/2014

O retrato de Dorian Gray, uma leitura psicanalítica




Oscar Wilde criou o duplo de Dorian Gray e seu retrato - um recurso aparentemente vazio desprovido de sentido no mundo da literatura fantástica - mas que na realidade mostra-se bem mais complexo. Esta obra possui um criador e sua criação monstruosa, sujeitando-os a uma nova fragmentação. O pintor Basil Hallward cria o que no fim de tudo resultará numa aterradora obra de arte – digna das regiões do Tártaro -, na qual revela muito de sua própria vida, e, que por isso, deve permanecer em segredo. Mas a vida por ele pintada torna-se independente dele; o retrato afigura-se como original e duplo do próprio Dorian. Ele simplesmente pensa num desejo impossível: ficar sempre jovem enquanto o seu retrato envelhece. Dorian é um narcisista por assim dizer introvertido - e não conseguindo realizar suas pulsões, desloca-as para o objeto na tentativa de obter a satisfação narcísica. O criador diante da criatura: “Você se tornou para mim a encarnação visível daquele ideal invisível cuja memória nos obceca a nós artistas como um sonho perfeito”. Esta obra de Oscar Wilde – é bom que se diga – transformou-se na época (1891) numa espécie de evangelho do decadentismo e do esteticismo. A morte de Dorian é simultânea com o golpe que ele desfere contra o retrato. Criados entram na sala olhando o magnífico retrato na parede do amo. Ele o retrato estava ali como eles os tinham conhecido: na esplendência de sua mocidade e beleza. Mas no chão jazia o cadáver de um homem em traje-rigor – com uma faca cravada no peito: lívido enrugado repugnante. Mas pelos anéis conseguiram identificá-lo. Era claro o próprio Dorian Gray - um outro de si mesmo, desconhecido como tal e reconhecido pela sensação de estranhamento que é capaz de causar. O duplo é um Outro, que olha o sujeito sem lhe dizer nada, apenas faz com que ele se interrogue fazendo-se a seguinte questão: “que queres tu de mim?” - ou “Che voi”?

Najla Assy, psicanalista, doutora em Psicologia pela Universidade Paris VII - Sorbonne, França

24/06/2014

Abutres, coveiros e goiabas





1. Os abutres

São os mais ideológicos de todos. No plano internacional têm sido puxados por The Economist e Financial Times. Para eles o Brasil se assemelha a uma valiosa carniça a ser saqueada. O valor da carniça aumentou muito desde as descobertas na camada atlântica do pré-sal. Muitos deles mantém uma pretensa elegância, muito própria para quem gosta de usar ternos de grife no trabalho. Seu estilo preferido é o prosaico analítico, com direito, vez por outra, a certos sarcasmos pesados, que eles vêem como mera ironia, como a de comparar a nossa presidenta a Groucho Marx. Adoram elogiar o México e a Aliança do Pacífico, como “respostas” ao Brasil e o Mercosul. No fundo, no fundo, o que querem é garantir o máximo possível de renda para o capital rentista e a parte do leão das riquezas brasileiras, passadas, presentes e futuras para ele. Às vezes animam gente mais grosseira, como no caso das vaias VIP, no Itaquerão. Mas aí começamos a entrar no segundo grupo.

2. Os coveiros

De um modo geral, são aqueles detratores que, no fundo, bem no fundo, acham que nasceram no país, na latitude e na longitude erradas, além do fuso horário trocado. Latitude errada: nasceram no hemisfério sul. Longitude errada e fuso horário trocado: a hora da nossa capital não é a mesma de Washington, nem de Londres, nem de Paris. Grosso modo, dividem-se em dois grupos. O primeiro simplesmente detesta o país em que nasceu. Não suporta olhar pela janela e ver bananeiras ao invés de pine trees. Detesta até ver palmeiras ao invés de palm trees. São os detratores de sempre, os que se ufanam da Europa e dos Estados Unidos e que pensam que o nosso povo é desqualificado para ser um povo. Sua abrangência é nacional, mas também aparecem alguns no plano internacional. Ouvi durante seminário recente aqui em Berlim que o Brasil é um país que não tem cultura, só tem música e samba. Não sei exatamente o que a pessoa em questão, que não era brasileira, entendia por “cultura”, “música” e “samba”, mas sei muito bem o que ela entendia por ”Brasil”: um bando de gente nua  por fora e por dentro, mais ou menos como os primeiros europeus viam os índios quando chegaram para conquistá-los e dizimá-los. São e serão os coveiros de sempre. O segundo grupo pegou carona na campanha dos abutres. Gosta de falar mal do Brasil de agora, este que aí está, com pleno emprego e melhora na repartição de renda. Quer dar a volta no relógio e no calendário, nos ajustar de novo ao tempo em que pobre era miserável e miserável não era nada. Acha que pode garantir de novo os aeroportos só para si. Mas é um grupo que gosta de falar também em generalidades. Se dentro do Brasil, usa o pronome nós (“nós somos corruptos”, “nós somos violentos”, “nós somos ineficientes”, etc.), mas é um “nós” que tem o valor de “eles”, pois só vale da boca para fora. É uma verdadeira proeza gramatical. Pois o distinto coveiro deste grupo se apresenta, explícita ou implicitamente, como uma exceção. Os estilos preferidos variam: vão do insulto grosseiro à lamentação sutil. Os coveiros deste grupo costumam ter um alvo preciso, que copiam dos abutres: no momento atual, a eleição de outubro. Já os coveiros do primeiro grupo não têm alvo preciso, a não ser o de fazer compras em Miami (alguns) ou passear de bonde ou ônibus nas capitais europeias enquanto faz campanha contra corredores de ônibus nas cidades brasileiras.

3. Os goiabas

Este é um grupo mais variegado. Seu estilo varia entre a euforia e a lamentação. Mas são plagiadores profissionais. Copiam sem restrição tudo o que lhes é servido pelos abutres e os coveiros. Repetem entusiasticamente: “o gigante acordou em junho do ano passado”. Ou chorosamente: “a Copa do Mundo no Brasil tirou dinheiro das escolas e dos hospitais”. E repetem firmes outras condenações peremptórias, como “a de que os estádios ficarão necessariamente ociosos depois da Copa”. São muito numerosos, barulhentos, tanto dentro como fora do país. Também repetem-se muito entre si mesmos, achando que estão sendo originais. Gostam de dizer que estão “mostrando o verdadeiro Brasil” ao nos detratar como um país imóvel, que não tem entrada nem saída. Os grupos ficaram martelando – mais os coveiros, os goiabas e, mas com a reza em voz baixa a seu favor vinda dos abutres internacionais e também com as vezes a reza em voz alta dos abutres nacionais – que a Copa não ia dar certo, que seria um fracasso, que os aeroportos iam entrar em colapso, que as cidades (e o metrô de S. Paulo no dia da abertura) iriam parar, etc. Deram com os burros n’água. Cavaram a própria cova e esqueceram de levar uma escada de saída. Ainda esperam que “algo”, alguma catástrofe, qualquer coisa, aconteça até o final da Copa. Depois deste final, vão tentar uma de duas: se o Brasil ganhar a Copa, vão dizer que o nosso povo é um bando de babacas que só sabem correr atrás da bola quando vêem uma. Se o Brasil perder, vão insistir na ideia de que o governo jogou dinheiro fora. Vamos ver o que vai acontecer.

Antes de encerrar, quero esclarecer que “abutres”, “coveiros”, “goiabas” e até “burros n’água” são apenas metáforas literárias, que não devem ser lidas literalmente. Nada tenho contra os abutres que, como os urubus, ajudam a manter a limpeza no seus espaços; nem contra a operosa classe dos coveiros, tão socialmente valiosos como qualquer outra profissão laboriosa; muito menos contra as goiabas, frutas deliciosas como tantas outras; e certamente nada contra os pacientes burros da vida real, que nada têm de burros. Burros, neste último sentido, apesar de alguns se acharem espertalhões, são os “abutres”, os “coveiros”, e os “goiabas”.

Flávio Aguiar  reside em Berlim, é jornalista e escritor

23/06/2014

Vislumbres


Lenora Delmare
 
 

 
Todas as flores são chamas
chamas que querem tornar-se luz*
Todo pensamento é chama que aspira vir à luz
E o anelo da chama juntar-se a outras chamas
e assim fazer um grande clarão
Se a chama é uma fração da luz
O pensamento é um relance um relâmpago
zelosa centelha que por segundos
um fugidio reflexo alberga
e tornado vela acesa
nossa imensa noite pode alumbrar
velando a escuridão de nossas crenças e certezas
e o medo do novo afugentando
Como o nenúfar precisa descer às profundezas do lodo
para ressurgir a cada dia acompanhando a aurora,
necessita o pensamento mergulhar a cada noite
no mais íntimo de nosso ser
para na manhã seguinte aflorar luminescente
pleno de nuances de luzes e cores
num desabrochar que é sempre a esperança de novos albores
Oh pensamento! Chama, luz, flor, aurora
busquemos nós a cada dia o teu clarão
na faina constante de alcançarmos o vir a SER
teus guardiões, jardineiros, pensadores.
 
 
* Gaston bachelard

17/06/2014

Valter Hugo Mãe - A desumanização (entrevista)




Narrado por uma menina de 11 anos, A desumanização apresenta a paisagem acidentada da Islândia, com ênfase nos longos braços de mar que avançam montanhas adentro. No livro, os fiordes não são apenas moldura para dramas humanos – são também personagem.
 Confira abaixo trechos da entrevista para o jornal O POVO, de Fortaleza, em abril de 2014.

  O POVO – A Revolução dos Cravos, comemorada recentemente, melhora a disposição dos portugueses para encarar o cenário de crise no país e na Europa?

Valter Hugo Mãe – A Revolução dos Cravos é uma das datas mais dignas da nossa história. Acabar com uma ditadura é basilar em todos os lugares do mundo. E foi isso que aconteceu há 40 anos. O meu respeito pelo 25 de Abril (de 1974) é absoluto. A crise é ótima para todos os totalitarismos, todos os cretinismos, todos os despotismos e, se quiser até uma palavra que acho que nunca disse publicamente, para todos os “filhadaputismos”. Os 40 anos são efetivamente uma ajuda para que as pessoas percebam que há uma construção, que é a democracia, que recuou muito nos dois últimos governos, sobretudo neste governo que agora está no poder e que é um grandessíssimo monte de “merda”.

  OP - A literatura é uma resposta ou um antídoto às asperezas do mundo?

VHM - É tudo isso. Ela responde, ela questiona, ela anula coisas, intensifica outras. Literatura serve pra tudo. Eu tenho muita vontade de que os livros construam, que os livros tenham, em última análise, um resultado benigno, que induzam à cidadania. Talvez não seja obrigatório que os livros das pessoas sejam assim. Pra mim, ela (a literatura) não pode ser de outra forma porque eu não consigo ser de outra forma. Eu não quero ser uma pessoa de outra forma. E, como não quero ser uma pessoa de outra forma, não posso ser um autor oponente àquilo em que eu acredito enquanto gente. A literatura está para problematizar, mas talvez esteja também para salvar o mundo um bocado.

OP - Qual o lugar da utopia na sua obra?

VHM - É muito grande. Quem vive sem utopias vive um pouco sem razão. Quem não acredita no impossível não vai além da banalidade. E acho que o futuro está um pouco além das vivências, além de algo que nós ainda não descortinamos. Eu prefiro estar do lado dos que recusam o ceticismo. O ceticismo é uma espécie de desculpa pra não fazer.

  OP - Numa das passagens do romance, a personagem Halla diz que “o inferno não são os outros. Os outros são o paraíso”.

VHM - Acredito muito nisso. Acho que o Jean-Paul Sartre não era propriamente um idiota, mas causou um enfoque demasiadamente violento. O inferno pode ser os outros ou pode ser alguém, mas os outros são categoricamente o paraíso. Não encontramos nada que nos justifique mais na vida do que outra pessoa. A vida não se faz por andarmos aqui sozinhos; se faz por sermos misturados com os outros. Não somos em absoluto nada. Nós somos misturados, e a nossa felicidade acaba sendo por presumir o outro, por supor o outro. Sozinhos não precisamos nem de ser felizes porque não precisamos de ser nada.

OP - Um dos grandes temas de A desumanização é a comunicação com as coisas do mundo (objetos, paisagens e animais). Às vezes, porém, esse mundo é muito mais vivo do que o dos personagens.

VHM – Neste livro eu quis que a natureza fosse uma personagem. Ela surge imbuída com uma capacidade quase pensante. O próprio pai da narradora diz, a certa altura, que a Islândia pensa. E a Islândia interfere no romance de uma forma muito decisiva através daquilo que os personagens esperam, do modo como as personagens interpretam os fenômenos da natureza. Isso é uma forma de espiritualizar aquilo que nos rodeia. É uma espiritualidade aquém da transcendência. Podemos acreditar na transcendência de que Deus existirá depois da morte ou além da vida. Ou podemos acreditar que a natureza em si é uma espiritualidade. A natureza já nos transcende bastantemente. Ela, por si só, já é muito mais do que nós podemos explicar, do que nós podemos entender, do que nós podemos dominar. Por isso ela escapa-nos. As personagens estão conscientes de que a natureza tem uma inteligência que participa decisivamente das nossas vidas. Eu tenho muito essa vontade de ter na natureza uma religião bastante.

OP - Por que escrever a partir da Islândia?

VHM – Por ser ao mesmo tempo um lugar cândido e agressivo, longínquo e solitário, mas habitado. É o espaço que indica a disciplina da vida. É uma noção de sobrevivência. Modos de contar

 OP  - A perspectiva feminina é privilegiada de alguma maneira em sua literatura?

VHM - Estou convicto de que a biologia reservou pras mulheres uma aventura muito mais impressionante. O homem não tem isso de dividir o seu corpo, multiplicar. O homem é um terreno muito mais estéril, que acaba por procurar realizações exteriores à sua fisicalidade. Uma compensação. E a mulher tem a maternidade. Enfim, não é absoluto, não é uma generalização que possa ligeiramente ser universal. Porque há mulheres que não quererão ter filhos e há homens que são mais impressionantes que as mães.

OP - A paisagem que você apresenta em A desumanização é eminentemente acidentada. O grande símbolo dela é o fiorde. O que ele representa literariamente?

VHM – O fiorde é mesmo isso. É o lugar do acidente, o lugar do improvável, o lugar do difícil. Aquele espaço não estava à espera de ser habitado por gente. É como se tivesse sido construído rejeitando a presença do ser humano. Mas, por contrassenso ou por casmurrice, o ser humano até ali conseguiu chegar. E ele representa essa capacidade estranha que o humano tem de chegar ao lugar impossível, tendo em conta que, paradoxalmente, não consegue resolver-se enquanto entidade destruidora. Eu penso um pouco sobre essa dualidade: de ser capaz do impossível, mas não ser capaz de se redimir em absoluto.

OP - Outro tema do livro é o duplo. De nascença, o homem é esse ser mutilado como o que surge nos seus livros

VHM - Sim, acredito que todos nós vivemos embotados por uma comunicação incompleta. A companhia nunca é absoluta, nunca é possível. É uma construção. Estamos condenados a uma certa solidão, à impossibilidade de comunicar. A solidão é a condição sine qua non. E isso passa pela linguagem. Não há linguagem que transponha exatamente a solidão. A literatura é a crença de que um dia vai acontecer uma comunicação absoluta.

OP – Misturar poesia e prosa é uma preocupação constante no seu trabalho?

  VHM - Eu acredito muito que os romances são feitos de poesia. Aquilo que faz com que um relato possa ascender à condição de literatura é o que vai buscar na poesia. Se o romance não tiver essa dimensão, nem é literatura. É um relato. É uma narrativa. A literatura constrói-se ao modo como se conta. É feita no modo como o resultado é alcançado. Esse componente eminentemente plástico é que transforma a épica em arte. Épica pode ser filosofia e pensamento, mas não é arte. O que eu proponho nos meus livros é imediatamente a poesia. É o modo de dizer aquilo. Quero encontrar um modo de contar histórias


. A desumanização, de Valter Hugo Mãe:  Editora: Cosac Naify (160 páginas) Preço: R$ 34,90

15/06/2014

E se a chama apagar,

se tudo falir, o mar acabar?
 
 
(Música de Ernesto Nazareth, letra de José Miguel Wisnick)



08/06/2014

Constatação




 
 
rasgo a língua para
embrulhar palavras
decodificar metáforas
 
tenho tímpanos
rompidos por
sons dodecafõnicos

04/06/2014

Um conto de Juan José Arreola


Arte mochica, Peru

 
Tu e Eu
 
 
Dentro de Eva,  Adão vivia feliz num paraíso de entranhas. Preso como a semente na polpa doce do fruto, eficaz como uma glândula de secreção interna, dormitando como uma crisálida no seu capulho de seda, as asas do espírito amplamente desdobradas.
como todas as criaturas ditosas, Adão renunciou à sua bem-aventurança e se pôs a procurar qualquer saída. Investiu contra a correnteza nas águas densas da maternidade, forçou com a cabeça uma passagem no túnel de toupeira e cortou o liame da sua aliança primitiva.
Mas o habitante e a desabitada não puderam viver separados. Aos poucos eles foram idealizando um cerimonial cheio de nostalgias pré-natais , um ritmo obsceno e íntimo que devia começar com a humilhação consciente de Adão. Ajoelhado como diante de uma deusa, suplicava e oferecia todo qualidade de presentes. Em seguida, com uma voz cada vez mais urgente e ameaçadora, começava uma justificação do mito do eterno retorno. Depois de se fazer de muito rogada, Eva suspendia-o do chão, esparzia as cinzas dos seus cabelos, tirava-lhe as roupas de penitente e o cobria parcialmente com o seio. Aquilo foi o êxtase. Mas o ato de magia imitativa deu péssimos resultados no tocante à propagação da espécie. E em face da multiplicação irresponsável de adões e evas, que traria como consequência o drama universal, um e outro foram chamados a prestar contas. (No chão, como um clamor mudo, estava fresco o sangue de Abel)
Entre cínica e humilde, Eva se limitou no tribunal supremo a fazer uma exibição mais ou menos velada das suas virtudes naturais, enquanto ía recitando a cartilha da companheira perfeita. As lacunas do sentimento e os hiatos da memória foram admiravelmente compensados por um longo repertório de risinhos, manhas, dengues. No fim, fez uma esplêndida pantomima do parto doloroso.
Por sua vez, muito formalista, Adão declamou um resumo extenso da história natural, convenientemente expurgado de misérias, morticínios, traições. Falou do alfabeto e da invenção da roda, da odisseia do conhecimento, do progresso da agricultura, do sufrágio feminino, das guerras de religião, da lírica provençal.
Sem qualquer explicação, colocou tu e eu como exemplo. Definiu-nos como o par ideal e me tornou um escravo dos teus olhos. De súbito, porém, fez ainda há pouco com que brilhasse esse olhar que, vindo de ti, para sempre nos afasta.
 
 
Extraído de Confabulário total [1941-1961] - EdInova Edições Ltda, 1969
 
 
Juan José Arreola, nasceu em Jalisco, México, em 1918 e faleceu em 2001.