DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

24/06/2014

Abutres, coveiros e goiabas





1. Os abutres

São os mais ideológicos de todos. No plano internacional têm sido puxados por The Economist e Financial Times. Para eles o Brasil se assemelha a uma valiosa carniça a ser saqueada. O valor da carniça aumentou muito desde as descobertas na camada atlântica do pré-sal. Muitos deles mantém uma pretensa elegância, muito própria para quem gosta de usar ternos de grife no trabalho. Seu estilo preferido é o prosaico analítico, com direito, vez por outra, a certos sarcasmos pesados, que eles vêem como mera ironia, como a de comparar a nossa presidenta a Groucho Marx. Adoram elogiar o México e a Aliança do Pacífico, como “respostas” ao Brasil e o Mercosul. No fundo, no fundo, o que querem é garantir o máximo possível de renda para o capital rentista e a parte do leão das riquezas brasileiras, passadas, presentes e futuras para ele. Às vezes animam gente mais grosseira, como no caso das vaias VIP, no Itaquerão. Mas aí começamos a entrar no segundo grupo.

2. Os coveiros

De um modo geral, são aqueles detratores que, no fundo, bem no fundo, acham que nasceram no país, na latitude e na longitude erradas, além do fuso horário trocado. Latitude errada: nasceram no hemisfério sul. Longitude errada e fuso horário trocado: a hora da nossa capital não é a mesma de Washington, nem de Londres, nem de Paris. Grosso modo, dividem-se em dois grupos. O primeiro simplesmente detesta o país em que nasceu. Não suporta olhar pela janela e ver bananeiras ao invés de pine trees. Detesta até ver palmeiras ao invés de palm trees. São os detratores de sempre, os que se ufanam da Europa e dos Estados Unidos e que pensam que o nosso povo é desqualificado para ser um povo. Sua abrangência é nacional, mas também aparecem alguns no plano internacional. Ouvi durante seminário recente aqui em Berlim que o Brasil é um país que não tem cultura, só tem música e samba. Não sei exatamente o que a pessoa em questão, que não era brasileira, entendia por “cultura”, “música” e “samba”, mas sei muito bem o que ela entendia por ”Brasil”: um bando de gente nua  por fora e por dentro, mais ou menos como os primeiros europeus viam os índios quando chegaram para conquistá-los e dizimá-los. São e serão os coveiros de sempre. O segundo grupo pegou carona na campanha dos abutres. Gosta de falar mal do Brasil de agora, este que aí está, com pleno emprego e melhora na repartição de renda. Quer dar a volta no relógio e no calendário, nos ajustar de novo ao tempo em que pobre era miserável e miserável não era nada. Acha que pode garantir de novo os aeroportos só para si. Mas é um grupo que gosta de falar também em generalidades. Se dentro do Brasil, usa o pronome nós (“nós somos corruptos”, “nós somos violentos”, “nós somos ineficientes”, etc.), mas é um “nós” que tem o valor de “eles”, pois só vale da boca para fora. É uma verdadeira proeza gramatical. Pois o distinto coveiro deste grupo se apresenta, explícita ou implicitamente, como uma exceção. Os estilos preferidos variam: vão do insulto grosseiro à lamentação sutil. Os coveiros deste grupo costumam ter um alvo preciso, que copiam dos abutres: no momento atual, a eleição de outubro. Já os coveiros do primeiro grupo não têm alvo preciso, a não ser o de fazer compras em Miami (alguns) ou passear de bonde ou ônibus nas capitais europeias enquanto faz campanha contra corredores de ônibus nas cidades brasileiras.

3. Os goiabas

Este é um grupo mais variegado. Seu estilo varia entre a euforia e a lamentação. Mas são plagiadores profissionais. Copiam sem restrição tudo o que lhes é servido pelos abutres e os coveiros. Repetem entusiasticamente: “o gigante acordou em junho do ano passado”. Ou chorosamente: “a Copa do Mundo no Brasil tirou dinheiro das escolas e dos hospitais”. E repetem firmes outras condenações peremptórias, como “a de que os estádios ficarão necessariamente ociosos depois da Copa”. São muito numerosos, barulhentos, tanto dentro como fora do país. Também repetem-se muito entre si mesmos, achando que estão sendo originais. Gostam de dizer que estão “mostrando o verdadeiro Brasil” ao nos detratar como um país imóvel, que não tem entrada nem saída. Os grupos ficaram martelando – mais os coveiros, os goiabas e, mas com a reza em voz baixa a seu favor vinda dos abutres internacionais e também com as vezes a reza em voz alta dos abutres nacionais – que a Copa não ia dar certo, que seria um fracasso, que os aeroportos iam entrar em colapso, que as cidades (e o metrô de S. Paulo no dia da abertura) iriam parar, etc. Deram com os burros n’água. Cavaram a própria cova e esqueceram de levar uma escada de saída. Ainda esperam que “algo”, alguma catástrofe, qualquer coisa, aconteça até o final da Copa. Depois deste final, vão tentar uma de duas: se o Brasil ganhar a Copa, vão dizer que o nosso povo é um bando de babacas que só sabem correr atrás da bola quando vêem uma. Se o Brasil perder, vão insistir na ideia de que o governo jogou dinheiro fora. Vamos ver o que vai acontecer.

Antes de encerrar, quero esclarecer que “abutres”, “coveiros”, “goiabas” e até “burros n’água” são apenas metáforas literárias, que não devem ser lidas literalmente. Nada tenho contra os abutres que, como os urubus, ajudam a manter a limpeza no seus espaços; nem contra a operosa classe dos coveiros, tão socialmente valiosos como qualquer outra profissão laboriosa; muito menos contra as goiabas, frutas deliciosas como tantas outras; e certamente nada contra os pacientes burros da vida real, que nada têm de burros. Burros, neste último sentido, apesar de alguns se acharem espertalhões, são os “abutres”, os “coveiros”, e os “goiabas”.

Flávio Aguiar  reside em Berlim, é jornalista e escritor

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