DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/11/2014

Eupalinos ou o Arquiteto (trecho)






Ó corpo meu, que me lembrais o temperamento de minha índole, o equilíbrio de vossos órgãos, as justas  proporções de vossas partes, que vos fazem existir e vos restabelecem no seio das coisas moventes, vigiai minha obra; ensinai-me silenciosamente as exigências da natureza; comunicai-me essa grande arte da qual sois feito, da qual sois dotado, de sobreviver às estações e de vos refazer dos acasos. Que eu encontre em vossa aliança o sentimento das coisas verdadeiras; moderai, fortalecei, assegurai, meus pensamentos. Perecível que sois, vós o sois bem menos que os meus sonhos; perdurais mais que uma fantasia; [...] Instrumento vivo da vida, sois para cada um de nós o único objeto que se compara ao universo. [...] Sois verdadeiramente a medida do mundo, do qual minha alma apresenta-me apenas o exterior. Ela [a alma] o concebe sem profundidade, e tão futilmente, que por vezes se engana, contando-o entre seus sonhos; [...] Enfatuada de suas efêmeras fabricações, crê-se capaz de uma infinidade de realidades diferentes; imagina existirem outros mundos; mas vós a chamais de novo a vós mesmos, como a ãncora  a si, o navio...Mas possa a obra que agora quero fazer, obrigar-nos a nos responder e surgir unicamente de nosso entendimento!  [...]Cumpre agora que corpo e alma se unam em uma construção bem ordenada."

Paul Valéry


26/11/2014

... II




colher folhas
desfolhar pétalas
nadar em plânctons
plantar prantos
desaguar em labirintos
 
meros sonhos adormecidos
nos solstícios primaveris
saudade fatiada
entre luz e sombra...

germinou cresceu floriu
sobre o tapete passos
apressados rosas despetaladas
para o espetáculo continuar
no jardim das ilusões perdidas...

22/11/2014

Transeunte





em ruas de portas
fechadas trafegam
gaiolas voadoras
chão chumbado
plúmbeo e impropérios
 
pássaros empalhados
vociferam trinados
dissonantes
 
estranha língua
lâmina afiada
camaleão do asfalto
sangra em lascas
de pedras polidas
 
línguas de fogo
rasgam
o céu da boca
em fagulhas
rasgam
 corpos de borboletas
sem asas
espalhadas no asfalto
 


19/11/2014

Zumbi somos todos nós!!!



O dia 20 de novembro, considerado o Dia da Consciência Negra no Brasil por ser a data do nascimento de Zumbi. deveria ser feriado nacional. Nossa dívida ao povo africano é impagável. Zumbi foi um homem que lutou até á morte contra a escravidão de seu povo, pela liberdade e pelo direito a uma vida digna. Os africanos foram tirados de seus países à força para trabalhar gratuitamente nas grandes fazendas dos senhores brancos.
 E a homenagem que considero verdadeiramente justa é respeitá-los como seres humanos dando-lhes iguais condições e oportunidades de trabalho, saúde e educação.  




16/11/2014

Sem aviso



 
Tanta coisa que eu não sabia. Nunca tinham me falado, por exemplo, deste sol duro das três horas. também não me tinham avisado sobre este ritmo tão seco da vida, desta martelada de poeira. Que doeria, tinham me avisado. Mas o que vem para a minha esperança do horizonte ao chegar perto se revela abrindo asas de águia sobre mim, isso eu não sabia. Não sabia o que é ser sombreada por grandes asas abertas e ameaçadoras, um agudo bico de águia inclinado sobre mim e rindo. E quando nos álbuns de adolescente eu respondia com orgulho que não acreditava no amor, era então que eu mais amava; isso eu tive que aprender sozinha. Também não sabia no que dá mentir. Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser tão precavida; porque depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso ´já atordoada eu sentia - isso era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta.

Clarice Lispector


13/11/2014

Manoel de Barros - 1916-2014


 
 
A maior riqueza
do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
palavras que me aceitam
como sou
- eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
 portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis
que vê a uva, etc, etc
Perdoai, mas eu
preciso ser Outros
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
 
 
***
 
 
Quando o mundo abandonar o meu olho,
quando o meu olho furado de belezas for esquecido pelo mundo,
Que hei de fazer?
Quando o silêncio que grita do meu olho, não for mais escutado
Que hei de fazer?
Que hei de fazer se de repente
a manhã voltar?
Que hei de fazer?
Dormir, talvez chorar

12/11/2014

Do amor


Amor e Psique, Edward Münch
 
 
Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para dar-se a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo que no meio do mal-estar, dia após dia, não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.
 
 
Giorgio Agamben, em Ideia da prosa - Autêntica Editora

10/11/2014

Quantos muros nos separam...?


Decorridos vinte e cinco anos da queda do muro de Berlim (O8.11.1989) vemos repercutir o fato internacionalmente como uma grande vitória, como se não existissem muitos outros criados antes deste; como se de lá para cá não tivessem erguido outros tantos. Em 1989 havia cerca de onze, entre muros, barreiras ou muralhas erguidas, e hoje, em pleno século XXI, já temos mais  de cinquenta e cinco, que correspondem a exatos 8.000kms!
E quais seriam os motivos ou pretextos para a construção desses muros?
- "impedir conflitos entre os povos"
- evitar "atos terroristas"
- impedir que migrantes estrangeiros ultrapassem as fronteiras

A partir de tais alegações ergueram-se os muros que separam de forma descontínua, Israel e Cisjordânia e a faixa de Gaza; o muro que separa a Coréia do Norte da Coréia do Sul, considerado o mais antigo de todos; entre Israel e Egito; entre a Índia e Bangladesh, a mais longa fortificação, com seus três mil quilômetros formando um verdadeiro "buraco geográfico"
 
 
Israel/ Cisjordânia
 
 
México/EUA
 
 
Índia/ Bangladesh 
 


O muro marroquino ou "muro de areia", que divide o Saara ocidental em dois

 
Marrocos/Saara ocidental 
 
O muro de Berlim foi derrubado, mas a Alemanha continua dividida em duas, não existe integração entre elas, seja política, econômica ou social. A "irmã pobre" é sempre vista de esguelha, sem as mesmas oportunidades de emprego.

Muros, barreiras, muralhas são os preconceitos, a intolerância ao que é diferente, a dificuldade para dividir com o outro, a ausência de solidariedade num mundo cada dia mais voltado para o lucro e o poder. Um mundo que estimula cada vez mais o culto à imagem, ao narcisismo desenfreado, quase patológico. Os muros invisíveis, esses sim, são tão ou muito mais perigosos que os tornados "acidentes geográficos".

09/11/2014

Sola voy con mi pena...

 
solo voy con mi pena
sola va me condena
correr es mi destino
para burlar la ley
perdido en el corazón
de la grande babylon
me dicen el clandestino
por no llevar papel
pa'una ciudad del norte
yo me fui a trabajar
me vida la dejé
entre ceuta y Gibraltar
soy una raya en el mar
fantasma en la ciudad
mi vida va prohibida
disse la autoridad
solo voy en el corazón
de la grande babylon
me dicen el clandestino
yo soy el quiebra ley
 
mano negra clandestina
peruano clandestino
marijuana ilegal
 
argelino clandestino
nigeriano clandestino
boliviano clandestino
colombiano clandestino
uruguaio clandestino
mano negra clandestina
marijuana ilegal



 



07/11/2014

Ideia da felicidade



 
Em todas as vidas existe qualquer coisa de não vivido, do mesmo modo que em toda palavra há qualquer coisa que fica por exprimir. O caráter é a obscura força que se assume como guardiã dessa vida intocada: vela atentamente por aquilo que nunca foi e, sem que o queiras, inscreve no teu rosto a marca disso. Por essa razão, a criança recém-nascida parece já ter semelhanças com o adulto: de fato, não há nada de igual entre esses dois rostos, a não ser, num como no outro, aquilo que não foi vivido.
A comédia do caráter: no momento em que a morte arranca das suas mãos o que essas tenazmente  escondem, aquilo de que se apodera é apenas uma máscara. Nesse momento, o caráter desaparece: no rosto do morto já não há marcas do que não foi vivido, as rugas gravadas pelo caráter alisam-se. Assim se brinca com a morte: ela não tem nem olhos nem mãos para o tesouro do caráter. Esse tesouro - aquilo que nunca foi - é recolhido pela ideia da felicidade. Ela é o bem que a humanidade recebe das mãos do caráter.
 
 
Giorgio Agamben, em  Ideia da prosa - Autêntica Editora

05/11/2014

O Enigma





As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho. Elas se interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam outras formas deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens trituradas pela experiência, prisioneiras do hábito ou domadas pelo instinto imemorial das pedras. As pedras detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo. E na contenção desse instante, fixam-se as pedras – para sempre – no chão, compondo montanhas colossais, ou simples e estupefatos e pobres seixos desgarrados
. Mas a coisa sombria – desmesurada, por sua vez – aí está, à maneira dos enigmas que zombam da tentativa de interpretação.
 É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios. Carecem de argúcia alheia que os liberte de sua confusão amaldiçoada. E repelem-na ao mesmo tempo, tal é a condição dos enigmas. Esse travou o avanço das pedras, rebanho desprevenido, e amanhã fixará por igual as árvores, enquanto não chega o dia dos ventos, e o dos pássaros, e o do ar pululante de insetos e vibrações, e o de toda vida, e o da mesma capacidade universal de se corresponder e se completar que sobrevive à consciência.
 O enigma tende a paralisar o mundo. Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade de suas fibras, mas não se compadece nem de si nem daqueles que reduz à congelada expectação.
Ai! de que serve a inteligência – lastimam-se as pedras. Nós éramos inteligentes, e contudo, pensar a ameaça não é removê-la; é criá-la.
Ai! de que serve a sensibilidade – choram as pedras. Nós éramos sensíveis, e o dom da misericórdia se volta contra nós, quando contávamos aplicá-lo a espécies menos favorecidas.
Anoitece, e o luar, modulado de dolentes canções que preexistem aos instrumentos de música, espalha no côncavo, já pleno de serras abruptas e de ignoradas jazidas, melancólica moleza.
Mas a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura.

Carlos Drummond de Andrade

02/11/2014

Somos todos um palimpsesto? *




O coração após certo momento da vida é qual palimpsesto, nada se pode escrever nela sem primeiro raspar o texto da época anterior.
 
 
Joaquim Nabuco, escritor e líder abolicionista, nascido em Recife(PE)
1849-1910.
 
 
 
* Palimpsesto é aquilo que se apaga para escrever novamente; foi uma técnica adotada durante a Idade Média entre os séculos VII a XII, devido ao alto custo do pergaminho. Consistia em apagar um texto através de sucessivas lavagens ou raspagens com pedra pomes.
 
 


01/11/2014

A árvore



 
O frio olhar salta pela janela
para o jardim onde anunciam
a árvore.
 
A árvore da vida? A árvore
da lua? A maternidade simples
da fruta?
 
A árvore que vi numa cidade?
O melhor homem? O homem além
e sem palavras?
 
Ou a árvore que nos homens
adivinho? Em suas veias, seus cabelos
ao vento?
 
(O frio olhar
volta pela janela
ao cimento frio
do quarto e da alma:
 
calma perfeita,
pura inércia
onde jamais penetrará
o rumor
 
da oculta fábrica
que cria as coisas
do oculto impulso
que explode em coisas
 
como na frágil folha
daquele jardim.)
 
 
João Cabral de Melo Neto