DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/02/2015

Macobêba, crônica de Mário de Andrade*



 
No geral tenho um pouco de fadiga diante das assombrações. Acredito nelas e sei que elas são um fornecimento contínuo de sensações intensas, porém, me cansa a precariedade plástica que elas têm. Falta invenção pra elas duma forma exasperante.
Inda agora está aparecendo no sul litorâneo de Pernambuco uma assombração muito simpática. É o chamado Macobêba, bicho-homem num tamanho arranha-céu, gostando muito de beber água do mar e queimar terras. Onde passa fica tudo esturricado, repetindo a trágica obsessão nordestina pelas secas e, por causa da mesma obsessão, o Macobêba sedento, bebe até água do mar. E tanta que as marés estão desordenadas por lá e às vezes o Atlântico baixa a ponto de aparecerem baixios onde nunca olhar de praieiro ainda pousara.
No corpo o Macobêba é apenas um exagero. Mas não tem nada de original. Gigante feio mas cabeça, tronco e membros. Cabelo em pé, quatro olhos e rabo metade de leão, metade  de cavalo. Faz o que no geral fazem todas as assombrações desse gênero: assusta, mata, prejudica. Só teve até agora uma deliciosa prova de espírito: carrega sempre uma vassoura de fios duros maravilhosamente inútil. Não serve-se dela pra nada. Ora, por que será que o Macobêba traz uma vassoura na mão?
Muito provavelmente essa vassoura é uma reminiscência daquelas bruxas que montavam cabos de tal, quando partiam prás cavalhadas do Sabá.. Muito provavelmente.. Porém a grandeza do Macobêba está em trazer uma vassoura inteira e não se servir dela pra nada. Nisso reside a simpatia do grande monstro.
Só uma vez na minha vida estive em contato...objetivo com essa assombração. É verdade que eu era bem rapaz ainda e podem argumentar que eu estava com medo. Não estava não. Minha tia agonizava na casa pegada e nós, meninos, meninas  e excesso de criadagem tínhamos sido alojados no vizinho pra evitar bulha à chegada geralmente solene da morte. Era uma sala-de-jantar não muito grande, cheia por nós. Ninguém tinha vontade de rir, estávamos principalmente surpreendidos. De repente, da porta da copa surgiu no ar um pano grande bem branco. As criadas depois explicaram que era um lençol porque este é muito plausível na história das assombrações porém já naquele tempo não aceitei sem relutância a explicação das criadas. Hoje, quanto mais friamente analiso as lembranças mais me convenço de que não era um lençol não. Era um pano. Ou, por outra: nem era um pano exatamente, era um ser humano, disso estou convencidíssimo, porém desprovido de forma humana e possuindo a consistência e o provável aspecto físico dum pano. Surgiu no ar, atravessou em passo de transeunte o ar da sala, desapareceu no corredor escuro. Eu vi. Todos vimos ao mesmo tempo. Ninguém não exclamou:
- "Vi uma assombração!" Nada. Todos estávamos estarrecidos e uma criada, só um minuto depois, falou: - Foi lençol. Então fomos chamados pra chorar.
 
 
* Mário de Andrade nasceu em Sâo Paulo, no dia 09.10.1893 e faleceu em 25.02.1945, há exatos setenta anos.
 
Crônica publicada no Diário Nacional em 08.05.1929. 

22/02/2015

Três poemas de Donizete Galvão




 
Silêncio
 
De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de durar.
Passam as legiões
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com seus casacos de naftalina.
A nave branca chega ao porto
e tinge de vinho o azul do mar.
O maciço da rocha,
de costas para a cidade
sete vezes destruída,
celebra o silêncio.
A pedra cala
o que nela dói.
 
 
 
 
 
Fachada
 
 
Logo vai terminar o prazo
para o homem construir sua fachada.
Ele continua em andaimes.
Provisório.
Exibe máscaras cambiantes.
Sua face inconclusa,
sustentada por ferragens,
parece esconder que,
em todos esses anos de obra,
esqueceram-se inúteis plataformas
para edificar um escombro.

 
 
 
 
Uso
 
 
O uso dá caráter às coisas
como se o tempo maturasse
em suas moléculas
uma severa arquitetura.
 
A virtude do menos
enobrece a casa
com sua recusa
de adornos sem serventia.
 
O que o homem gasta
em suas mãos
adquire a aura
de suas dores.
 
Donizete Galvão é natural de Borda da Mata(MG). É autor de Do silêncio da pedra e O homem inacabado.


18/02/2015

A atualidade de Machado de Assis

Analfabetismo

Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases: o algarismo não tem frases, nem retórica. Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso país dirá:
- Quando uma constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o Sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito a todos superior a todos os direitos. A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:
- A nação não sabe ler. Há 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles: é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha, - por divertimento. A constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado. Replico eu:
- Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituições ...
- As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: “consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação”; mas
 – “consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%”. A opinião pública é uma metáfora sem base: há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Câmara: “Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem...” dirá uma coisa extremamente sensata. E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não temos base segura para os nossos discursos, e ele tem o recenseamento.

 
Crônica escrita em1876


11/02/2015

Quando o sol queima a água



Ainda era criança quando o sol pôs-se a cair. Brincava com ele sem atinar com os perigos do fogo; sem conhecer a dor não imaginava as rachaduras que seus raios deixariam no peito então transbordante de rios perenes e margens férteis.
Ouvia o cantar do rei do terreiro todas as manhãs, mas cantarolava sua própria canção; encantava-se com a luz do luar confundindo dia com noite. Aos poucos sua boca foi se transformando numa imensa saia franzida cujas margens se alargaram à medida que o astro ía ficando cada dia mais inclemente.
A água escorreu entre as fissuras da terra deslizou pela face entre sussurros e soluços deixando muitas bocas cheias de pedras, de falhas, formando uma imensa falésia de silêncio,  desolação e fome..

09/02/2015

A questão mais profunda

Ruina maia, Guatemala


Interrogamo-nos sobre o nosso tempo. Essa interrogação não se exerce em momentos privilegiados, ela se realiza sem trégua, ela própria faz parte do tempo, ela o fustiga à maneira insistente do próprio tempo. É apenas uma interrogação tênue, uma espécie de fuga. No ruído de fundo que constitui o saber do curso do mundo e por intermédio do qual ele precede, acompanha, segue em nós todo o saber, projetamos, acordados, adormecidos, frases ritmadas como questões. Questões sussurrantes. Qual é o seu valor? O que dizem? São ainda questões.
De onde vem esta preocupação com o questionar, e a grande dignidade atribuída à questão? Questionar é buscar, e buscar é buscar radicalmente, arrancar. Esse arrancar de raiz é o trabalho da questão. Trabalho do tempo. O tempo se busca e se experimenta na dignidade da questão. O tempo é a virada do tempo. À virada do tempo corresponde o poder de se tornar questão, palavra que antes de falar, questiona pela maneira de ser da escrita. [........................]

Interrogamo-nos sobre o nosso tempo. Essa interrogação tem seus traços próprios. Ela é insistente e não podemos, nem por um instante, prescindir de interrogar. (...) Ela interroga o nosso tempo que a carrega. Enfim, interrogamo-nos interrogando esse tempo.

 
Maurice Blanchot, em A Conversa Infinita -Editora Escuta

08/02/2015

Tarde demais...!?


Há coisas bem piores do que ser sozinho,

mas às vezes levamos décadas para percebê-lo.

E ainda mais vezes, demasiado tarde.

E não há nada pior do que demasiado tarde.





Charles Bukowski (1920-1994)

04/02/2015

Rabiscos




tentei riscar teu rosto
rabiscar teu corpo
pintar tua alma
em preto e branco
 
o sol se pôs na ponta
da agulha a linha
enrodilhou-se no parafuso
feito um labirinto
 
meus olhos se perderam
nas águas do novelo
 
dei braçadas contra a
corrente flutuei com
a correnteza desaguei
no deserto dos teus passos
 
vejo teu vulto sobre as
paredes arrastando-se
feito cobra acuada
debaixo da cama
 
tanta chuva em meu coração
e o sertão tão seco e só