DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/03/2015

Ainda me lembro



 
ouço o que andas a dizer
por aí por acolá
sei do que andas fazendo
por aqui
 
eu que nada entendo de mim
percebo o quanto me és estranho
e familiar quando vislumbro
entre a bruma luxuriante e uns
rasgos de raios de sol
teu fantasma pelas frestas
tuas tentativas para
invadir nossa casa
 
já participei desse coral de gritos e sussurros
desses lamentos em outros carnavais
nas mesmas praças
mesmas masmorras e
paus-de-arara de triste memória
 
teu jardim de ervas
daninhas é fértil em serpentes
venenosas com guizos
que emitem sons
hipnotizantes e encantatórios
 
a mim,  não mais enganas!


 a lembrança dos tapas nos ouvidos; o repentino abrir e fechar daquela porta pesada com a força que possui um brutamonte a gritar impropérios, a arrastar teu corpo como se molambo fosse: - levanta, filha da puta, tá pensando que aqui é hotel de luxo? - e a porrada comia solta com direito a choque elétrico nos peitinhos empinados e virgens; sem direito a emitir um ai; as palavras presas na garganta, o dente engolido a seco e a dignidade jogada no lixo!
 
não dá pra esquecer. Jamais! também não  dá pra aceitar que alguns que nunca passaram por isso, que não conhecem sequer a história do seu país, saiam às ruas para reivindicar o retorno de um dos períodos mais retrógrados e sombrios que já vivemos no Brasil. 
 


25/03/2015

HERBERTO HELDER: DOS POETAS, O POETA


 
 
Levanto as mãos e o vento levanta-se nelas
 
 
Levanto as mãos e o vento levanta-se nelas.
Rosas ascendem do coração trançado
das madeiras.
As caudas dos pavões como uma obra astronômica.
E o quarto alagado pelos espelhos
dentro. Ou um espaço cereal que se exalta.
Escondo a cara. A voz fica cheia de artérias.
 E eu levanto as mãos defendendo a leveza do talento
contra o terror que o arrebata. os olhos contra
as artes do fogo.
Defendendo a minha morte contra o êxtase das imagens.
 
 
Em Ofício Cantante - Poesia Completa, Assírio & Alvim
 


Aos amigos
 
 
Amo devagar os amigos que são tristes,
como cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem
e estão sentados
fechando os olhos,
com os livros atrás a arder
para toda a eternidade.
Não os chamo
e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro,
construímos um lugar de silencio.
De paixão.
 
 
***
 
 
...uma espuma de sal bateu-me alto na cabeça
nunca mais fui o mesmo,
passe por todos os mistérios simples,
e agora estou tão humano: morro
às vezes ressuscito para fazer uma grande surpresa a mim mesmo (...)
 
 
 
Herberto Helder nasceu em Funchal (Ilha da Madeira) em 1930 e faleceu ontem, dia 23.03.2015 em Cascais, Portugal

21/03/2015

Fragmentos de sonhos



 
A página esconde entre suas dobras segredos em branco; a qualquer momento podem ser revelados. Há um véu invisível sobre sua aparente pureza branca. Estás diante dela como se de uma encruzilhada estivesses: qual seria a estrada principal? E se te perderes? Tuas mãos tremem sobre a limpidez da página. o medo do que as palavras possam revelar te fascina e te amedronta e recuas meio que paralisado.
Escondidas sob a página reinam palavras vivas feitas de suor e sangue e sal e ar e sonhos...

19/03/2015

E o tiro saiu pela culatra...!

Lavando a farinha
 

De "alma lavada" vejo a farinha de um mesmo saco fazer pirão e embolar o meio de campo na arena dos indivíduos que, embora eleitos pelo povo para legislar de acordo com seus interesses (do povo), agem como jogadores empenhados em ganhar o jogo de qualquer maneira e a qualquer preço, com se estivessem num grande leilão onde ganha quem dá mais.
Quem tem telhado de vidro não deveria cutucar uma onça com vara curta, sob pena de sair da 'luta" com a cara arranhada.
Durante a farinhada espalharam-se gorgulhos e fungos para  todos os lados: quem tinha rabo de palha acabou se queimando, quem pensou ter boa pontaria acabou verificando que o tiro saiu pela culatra!

Quem deseja ser respeitado deve, antes de tudo, dá-se ao respeito.

E viva o povo brasileiro!



16/03/2015

Uma crônica de Otto Lara Resende




Vista cansada
 
 
Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio. Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer. Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos. Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
 
Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.
 
Otto Lara Resende nasceu em São João Del Rey(MG)-1922-1992

13/03/2015

O tempo




Entrou no asilo de pobres com cento e sete anos. O tempo foi passando. Ela o enchia, ao tempo, vivendo. Não tinha outra coisa mais a fazer. E lá está ainda hoje - com cento e quinzes anos. Cada vez menor, cada vez mais sucinta. Cento e quinze anos era muita idade: "tem certeza de que ela não está enganada ou mentindo ou que já não pensa bem?', indaguei. A pessoa disse que também tivera dúvidas, mas lhe haviam afiançado que, embora sem documentos, era isso mesmo. E uma das provas estava no fato da presença, nesse mesmo asilo, de um velho de oitenta e dois anos, conterrâneo da velhinha de cento e quinze. E que fora por ela amamentado... A mãe do velhinho não tivera leite, ele fora nutrido pela velhinha, então farta e jovem. e ali, no mesmo asilo, está o amamentado que não me deixa mentir.

Quem sabe, uma velhice solitária e despreocupada era o seu ideal, quem sabe se ele estava querendo sua liberdadezinha, seus, - amamentado e dominado a vida toda ´resmungos sem palavras, uma vida de pardal pousando em banco de praça.


Clarice Lispector - Curadoria Roberto Corrêa dos Santos - Rocco

09/03/2015

Curto circuito




da janela escura de uns olhos esverdeados escorreu uma gota de sal líquido que foi deslizando sobre a pele rugosa de uma serpente abrindo fendas sulcando vasos esgarçando tecidos deformando traços e contornos.
- ó criatura esdrúxula, por que tantos atavios, tantos atalhos? cairias bem num poço de sonhos ou de sombras para quem sabe encontrar o sol, quem sabe a lua?
No meio da noite após um dia inteiro sem emitir uma palavra, um som para ouvir. Do absoluto silêncio caiu uma palavra e estatelou-se no chão.

03/03/2015

Das limitações do viver




 
Até o fracasso vale a pena quando ele é o fruto da busca de um sonho impossível, perfeito, eternamente valioso.
Talvez não importe que estejamos destinados a falhar: desde que ainda haja sangue em nossas mãos, vamos sempre tentar outra vez; se realizarmos o sonho, se alcançarmos a forma, chegarmos ao ápice da perfeição, só nos restará o suicídio.
 
 
William Faulkner, Mississipi,  1897-1962
Autor de Enquanto agonizo, O som e a Fúria, Palmeiras selvagens, Luz em agosto, entre outros.

01/03/2015

Rio, flor de janeiro!





 
A gente passa, a gente olha, a gente para e se extasia
Que aconteceu com esta cidade da noite para o dia?
O Rio de Janeiro virou flor nas praças,nos jardins dos edifícios,
no Parque do Flamengo nem se fala: é flor é flor é flor,
uma soberba flor por sobre todas, e a ela rendo meu tributo apaixonado.
Pergunto o nome, ninguém sabe.
 Quem responde é Baby Vignoli, é Léa Távora.
(Homem nenhum sabe nomes vegetais,
porém mulher se liga à natureza em raízes, semente, fruto e ninho.)
Iúca! Iúca, meu amor deste verão que melhor se chamara primavera.
Yucca gloriosa, mexicana dádiva aos canteiros cariocas.
Em toda parte a vejo.
 Em Botafogo, Tijuca, Centro, Ipanema, Paquetá,
a ostentar panículas de pérola, eretos lampadários, urnas santas, de majestade simples.
 Tão rainha, deixa-se florir no alto, coroando folhas pontiagudas e pungentes.
A gente olha, a gente estaca
e logo uma porção de nomes populares
brota da ignorância de nós todos.
Essa gorda baiana me sorri:
 – Círio de Nossa Senhora… (ou de Iemanjá?) –
 Vela de pureza, outra acrescenta. –
 Lanceta é que se chama. – Não, baioneta. –
 Baioneta espanhola, não sabia?
E a flor, que era anônima em sua glória, toda se entreflora de etiquetas.
Deixemo-la reinar. Sua presença é mel e pão de sonho para os olhos.
Não esqueçamos, gente, os flamboyants que em toda sua pompa se engalanam aqui,
 ali, no Rio flóreo. Nem a dourada acácia,
nem a mimosa nívea ou rósea espirradeira,
esse adágio lilás do manacá, esse luxo do ipê que nem-te-conto,
mais a vermelha aparição dos brincos-de-princesa nos jardins
onde a banida cor volta a imperar.
Isto é janeiro e é Rio de Janeiro janeiramente flor por todo lado.
Você já viu?
 Você já reparou?
 Andou mais devagar para curtir essa inefável fonte de prazer:
a forma organizada rigorosa esculpintura da natureza em festa,
 puro agrado da Terra para os homens e mulheres
que faz do mundo obra de arte total universal, para quem sabe (e é tão simples) ver?
 
( Carlos Drummond de Andrade )