DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

11/12/2015

Nas franjas da noite


Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros,
 ninguém tenha. O maior direito que é meu
- o que quero e sobrequero -:
 é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim!
 
João Guimarães Rosa - Grande sertão: veredas
 
 

 

 
Existem muitas noites numa noite só como muitas folhas há na cabeça de um vivente, essa árvore que amarelece com o passar dos dias. Todos observam mudos e imóveis o fenecer de uma árvore que um dia deu frutos pra alimentar toda uma aldeia. Do seu tronco construíram-se barcos e todos lançaram-se ao mar, e todos alimentaram-se dos peixes. Os cabelos da árvore, de tanto crescer espalharam-se pelas areias da praia, mergulharam no mar, agitaram o mar em altas ondas: mar alto, maremoto mar e morte, mar e lama e nojo e vômitos.
O sal do fundo da terra transformou o que era podre em algas, e os pássaros em voos rasantes cantavam carregando em seus bicos outros organismos para outras plagas; outros bichos se reproduziam sob formas diversas aninhando-se em outras árvores, outros pousos. Nas noites daquela noite ecoaram gritos e  ranger de dentes, e cantares de galos nos quintais da memória, a memória que jamais dorme, que sempre se renova, que transforma seus galhos, suas folhas e seus frutos. A árvore de raízes profundas permanece altiva a observar do alto, apesar dos fortes vendavais, as intempéries que acometem a natureza humana.
 
A vida é mais forte e mais poderosa do que as palavras de um poema. Muito mais que a pequenez do homem. 
 
A vida é mais forte que qualquer arte.


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