II
A matemática não pôde progredir,
até que os hindus inventassem o zero.
O domador de baleias.
Meu duvidar é da realidade sensível aparente - talvez só um escamoteio das percepções. Porém, procuro cumprir. Deveres de fundamento a vida, empírico modo, ensina: disciplina e paciência. Acredito ainda em outras coisas, no boi, por exemplo, mamífero voador, não terrestre. Meu mestre foi, em certo sentido,
o Tio Cândido.
Era ele pequeno fazendeiro, suave trabalhador, capiau comum, aninhado em meios-termos, acocorado. Mas também parente meu em espírito e misteriousanças. (...) Tinha fé - e uma mangueira. Árvore particular, sua, da gente.
Tio Cândido aprisionara-a num cercado de varas, de meio acre, sozinha ela lá, vistosa, bem cuidada: qual bela mulher que passa, no desejo de perfumada perpetuidade. Contemplava-lhe, nas horas de desânimo ou aperto, o tronco duradouramente duro, o verde-escuro quase assustador da frondosa copa, construída. [...]
Dizia o que dizia, apontava à árvore: - Quantas mangas perfaz uma mangueira, enquanto vive? - isto, apenas. Mais, qualquer manga em si traz, em caroço, o maquinismo de outra, mangueira igualzinha, do obrigado tamanho e formato. Milhões, bis, tris, lá sei, haja números para o infinito. (...)
Daí, um dia, deu-me uma incumbência:
- Tem-se de redigir um abreviado de tudo.
Ando a ver. O caracol sai ao arrebol. A cobra se concebe curva. O mar barulha de ira e de noite. Temo igualmente angústias e delícias. Nunca entendi o bocejo e o pôr-do-sol. Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois. Um escrito, será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza.
João Guimarães Rosa em Tutameia, seu último livro publicado em vida. Guimarães Rosa faleceu poucos meses depois de lançada sua primeira edição,
em 1967.
Leo a la sabia ironía de João Guimarães con una sonrisa, y como el tío Cândido, llego a la conclusión que nada es lo que parece y todo tiene su misterio y su absurdo, por eso trato de vivir la vida como viene, aunque no la entienda.
ResponderExcluirUn placer como siempre pasarme por aquí, Cirandeira.
Un beso,
Ler Guimarães Rosa é sempre um desafio para mim; em cada releitura que faço de qualquer um de seus livros percebo
ResponderExcluiralgo novo que antes não havia notado. A mangueira, que ele usa como metáfora, contém em si milhares de outras, como um
texto que pode ser interpretado das mais variadas maneiras,
a depender de cada leitor. A leitura pode ser infinita, um bom texto nunca é definitivo. Para "A escova e a dúvida", por exemplo, ele nos oferece um conto em formato de prefácios, (sete!)sem nenhuma ligação aparente entre si - histórias que não têm um núcleo narrativo definido, seus narradores são indefinidos: "Meu duvidar é da realidade sensível aparente- talvez só um escamoteio das percepções."
Como a própria vida, nada é perfeito ou completo, as lacunas sempre existirão para que sejam preenchidas. Como o
zero, criado pelos hindus para representar a falta. Também o meu duvidar coincide com o dele. Estou sempre buscando, sempre tentando preencher o vazio que faz parte da vida. A obra de Guimarães Rosa é repleta de insinuações e indicações sobre a incompletude do escrever. "Ando a ver", diz ele. E eu também.
"Ando a ver", también prodría ser una frase que resumiera mi paso por la vida.
ResponderExcluirMe tienta descubrir más sobre Guimarães Rosa.
Un beso,