"Muitas vezes me perguntei por que motivo existem tão poucos escritores realmente bons, por que são tão excepcionais, quando há tanta gente que
escreve, quando o chamado da vocação soa com tanta sinceridade e urgência
em tantas consciências juvenis. Uma resposta, parcial e certamente questionável, seria a seguinte: para ser um grande escritor é preciso dispor
de traços de caráter opostos e excludentes entre si. Reduzidos ao básico,
esses traços são a razão e a desrazão, o método e o caos. Para construir uma
obra literária, como para qualquer outra tarefa intelectual, necessita-se prudência, organização e lucidez: é preciso aprender a fazer isso, escolher o
caminho certo, administrar suas forças, entender do que se trata. Não falo de
qualidades etéreas, mas das mais terrenas, já que para existir uma obra é
preciso haver um escritor em condições materiais de escrevê-la, de publicá-la
e, sobretudo, de continuar escrevendo. [...]
Mas, para que valha a pena, a obra tem de provir de um fundo de loucura irredutível a qualquer disciplina. A arte se alimenta do novo, o razoável é tão
velho quanto a civilização, tão repetido e previsível quanto as tábuas de multiplicar. Nada mais triste que uma pretensiosa criação artística que se esgota
no sentido comum, no óbvio e no bem-pensante. [...]
Onde encontrar a quimera completa? Existem esse homens feitos de duas metades contraditórias? Enfim, é assim como comecei: são raríssimos, e dadas
as duas condições tão improváveis, deveríamos nos felicitar por aparecer um a
cada cinquenta ou cem anos.
Não menos raro que um bom escritor é um bom leitor. A quantidade de leitores
realmente bons é mais difícil de medir porque se trata de entes privados, quase
sempre secretos. À diferença da escritura, a leitura não se publica, um crítico é
um escritor, não conta. Mas um amplo contato com leitores de todo tipo me convenceu de que a excelência nessa face oculta da literatura é raríssima. E me
ocorre que a causa dessa escassez obedece a causas que também encerram uma contradição externa. Por um lado, um leitor, para ser um bom leitor, deve
ler muito. A literatura é um sistema com suas próprias leis, e esse sistema se constituiu ao longo da história com a acumulação de uma enorme quantidade de livros. Ninguém poderia ler todos, mas ainda assim a totalidade é latente no projeto de uma leitura bem feita. (...) Justamente, o que diferencia um bom de um mau leitor é que este acredita no que está lendo, enquanto aquele sabe que
todo o sentido está na tradução daquilo que lê no peculiar idioma da literatura,
e para aprender esse idioma é preciso ter lido tudo, ou o bastante para se fazer
um ideia da totalidade".
César Aira, em Pequeno Manual de Procedimentos. Natural de Cel. Pringles, Argentina, 1949. É autor, entre outros títulos, de O vestido cor-de-rosa, A trombeta de vime, O tudo que sulca o nada, As noites de flores.