Caravaggio
[...]
e a morte torna-se alheia, menor, distante, como vista da rua, uma silhueta no
interior de uma janela acesa onde não moramos, aquarelas, estantes, pessoas
e a morte com os outros, não conosco, com os outros, familiar, trazendo pratos,levando pratos ajudando na ceia, ocupando um dos três lugares do sofá,
amável risonha simpática, estudando-os sem pressa e escolhendo um deles sem
que se deem conta, ao observar a fotografia de um grupo sei que a morte é a
criatura sorrindo lá no fundo, meio apagada, que se parece com alguém amigo
de que não lembramos a idade nem o nome, um parente que esteve ali o
tempo inteiro, anos seguidos, a fitar-nos do álbum e só no momento de nos vir
buscar se apresenta, discreto, delicado, ia apostar que com pena, a morte é um estranho com um pacotinho de bolos que nos cumprimenta de fugida nas
escadas ou segura a porta do elevador à nossa espera, nos pergunta para que andar vamos e se despede numa inclinação de cabeça continuando a subir
[...]
a morte é esta com a qual me confundem se calha pintar-me, calçar-me,
arranjar-me, pôr brincos, eu não sou assim, não tenho bochechas demasiado
vermelhas, pálpebras exageradas, um batom tão intenso
Antônio Lobo Antunes, Lisboa,1942. Também é autor de Memória de elefante, Os cus de Judas, Conhecimento do inferno(trilogia), Manual dos inquisidores, Tratado das paixões da alma, A morte de Carlos Gardel.
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