A verdade é que o Brasil às vezes enche. A gente vai achando interessantes as conversas: o presidente disse ao ministro fulano que o ministro sicrano era assim ou assado; ontem houve uma briga naquela boîte por causa da mulher de beltrano; João conseguiu levantar 15 milhões de cruzeiros no Banco do Brasil; Pedro vai ser nomeado embaixador; Manuel já está arrumando as gavetas para deixar o cargo; Joaquim avalizou uma promissória em troca de uma promessa de Antônio de não atacar Fagundes; o deputado tal recebeu as provas de uma tremenda bandalheira que, entretanto, ao que parece, não revelará;
os generais Antão e Beltão estão encabeçando um movimento no Exército no sentido de fazer sentir ao ministro que não é conveniente a promulgação de tal projeto; Praxedes já está convidando gente para formar seu gabinete; um grupo de industriais vai promover uma campanha para evitar a exportação de barbatimão para o Irã; um parente do presidente prometeu grandes ajudas se lhe derem a diretoria da associação meridional de tênis de mesa...notícias sobre deputados estaduais e jogo de bicho, sobre Cexim, Cofap...
O Brasil, às vezes enche. Principalmente nesta grande e quente aldeia que é o Rio de Janeiro onde, com meia hora de conversa em um clube ou uma boîte, qualquer pessoa fica sabendo das ligações, dos compromissos, das fraquezas
e das tediosas intimidades de um pequeno grupo de pessoas que se ajudam, se enganam, se friccionam, se alisam - essas pessoas que se acreditam e, ao menos aparentemente, são mesmo o Brasil. Pessoas eternas; podem sumir da vida pública depois de anos e anos de destaque e também de incompetência, fraqueza, desonestidade; subitamente, alguém tem um ataque de imaginação e as chama de volta, como se houvesse neste país uma trágica miséria de gente.
Pedro Nava costuma dizer que o brasileiro é tão desleixado
que só enterra o morto da família porque, se não enterrar, o morto começa a cheirar mal. Se não fosse isso - diz ele, que é médico, conhece por dentro a displicência de nossa gente - um parente deixaria que o outro fosse providenciar os papéis, o outro deixaria para amanhã, amanhã diria que afinal quem devia ver isso é o Tonico, e o Tonico prometia ver, mas depois que acabasse a irradiação do jogo, e afinal no dia seguinte explicaria que encontrara um amigo que tinha conhecido numa empresa fúnebre e prometera ver se conseguia um enterro de primeira por um preço de segunda - e assim por diante. A defesa do morto é mesmo cheirar mal. Mas a dos vivos, não. Parece que quanto mais cheiram mal, melhor. Por favor, não pensem que eu estou me referindo a fulano ou a sicrano. Não estou me referindo especialmente a ninguém; estou apenas, neste fim de tarde depois de um dia em que ouvi tanta conversa, um pouco fatigado de nosso querido Brasil.
Porque o Brasil, às vezes, enche.
Rubem Braga, Correio da Manhã, outubro de 1952
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