DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/12/2017

Machado de Assis fala sobre "um assunto de comestíveis"

 
 
[...]

 

Porquanto, a dita Câmara Municipal, perguntando-lhe o procurador se podia mandar fornecer jantar ao Tribunal do Júri, quando as sessões se prolongassem até tarde, respondeu que não, visto que tal despesa não se acha autorizada em lei.
Teve razão a Câmara, teve-a duas vezes: a primeira porque a lei o veda e a obediência à lei é a necessidade máxima; a segunda, porque o jantar é, de certo modo, um agente de corrupção. Não me venham com sentenças latinas: primo vivere, deonde judicare.* Não me venham com considerações de ordem fisiológica, nem com rifões populares, nem com outras razões da mesma farinha, muito próprias para embair ignorantes ou colher descuidados, mas
sem nenhum valor ou alcance para quem olhar as coisas de
certa altura. A questão é puramente moral e a presença do rosbife não lhe diminui nem lhe troca a natureza. Não me
venham também com o jantar na política, porque, em certos casos, não há incompatibilidade entre o voto e o prato de lentilhas; e politicamente falando, o paio é uma necessidade pública. O caso dos jurados é outra coisa.
A primeira e inevitável consequência do jantar aos jurados
seria a condenação de todos os réus, não porque o quilo implique severidade, mas porque induz à gratidão. Como se
sabe, absolvidos os réus, paga a municipalidade as custas; não é crível que um tribunal de homens briosos e generosos
condene a mão que lhe prepara o jantar. Convém contar com o pudor dos estômagos. Acresce que a digestão é variável em seus efeitos. Umas vezes inclina ao cochilo, e não se pode calcular que inúmeros erros judiciários sairão de um tribunal que dorme a sesta; outras vezes o organismo precisa de locomoção, e as sentenças cairão da pena como frutas verdes que um rapaz derruba. Não cito o
caso dos que fazem o quilo entre a espadilha e o basto e ficariam impacientes por sair; caso verdadeiramente assustador, visto que a maior das nossas forças sociais é o
voltarete.**
Cotejem agora as inconveniências do jantar com as vantagens do jejum. O jejum, um estado de graça espiritual
é uma das formas adotadas para macerar a carne e seus maus instintos. A satisfação da carne torce a condição humana, igualando-a à das bestas; ao passo que a privação
amortece a condição bestial e apura a outra; fortifica, portanto, o ser inteligível, aclara as ideias, afina e eleva a concepção da justiça. A sopa tem suas vantagens, o assado não é em si mesmo uma abominação; pode-se almoçar e querer bem, não há incompatibilidade absoluta entre a virtude e a couve-flor. A justiça, porém, requer alguma coisa menos precária, mais certa; não se pode fiar de hipóteses, de casualidades, de temperamentos.
O que me admira neste caso, não é a decisão da Câmara, que aplaudo, desde que é fundada em lei, e o respeito da lei
é a primeira expressão da liberdade. O que me admira é que só agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri um verbazinha para os seus pastéis? Só agora
há estômagos naquele tribunal? Só agora há processos longos e juízes famintos? Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperar alguns mais.
 
Machado de Assis, em Crônicas selecionadas- 01 de setembro de 1878
 
* "primeiro viver, depois julgar"
 
** jogo de cartas entre três pessoas, com 40 cartas.

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