DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

24/09/2018

Das glicínias

Van Gogh


As glicínias são flores de cores variadas que existem em abundância no Japão. Só as conheço virtualmente; as azuis são as mais belas, para mim. Dizem que o céu é azul. O pintor holandês Van Gogh pintou um, azul-marinho, cheio de estrelas. Mas azul, dizem, é a cor da tristeza, ou da melancolia, como querem alguns. Todo lugar pode ser um começo; todo fim pode ser infinito. Nas franjas do corpo pequenos montes adiposos, arquipélagos de veias azuis, cadeias de vasos incomunicáveis; cada um com sua virtualidade: a virtude seria azul se todos fôssemos daltônicos, mas acontece que estamos verdes de fome, sedentos de justiça, roxos de raiva e vermelhos de esperança.
E, embora digam que "a esperança é a última que morre", ela também morre...!
Quando tudo parece não ter pés nem cabeça, desconfiai!, porque as paredes têm ouvidos, os espelhos têm olhos, e os pés pisoteiam sem dó e sem piedade... 

20/09/2018

Disritmia poética





Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais meu
Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
( Carlos Drummond de Andrade em Sentimento do mundo )

*****

Sobre o vosso jazigo
- Homem político -
Nem compaixão, nem flores.
Apenas o escuro grito
Dos homens.

Sobre os vossos filhos
- Homem político -
A desventura
Do vosso nome.

E enquanto estiverdes
À frente da Pátria
Sobre nós, a mordaça.
E sobre as vossas vidas
- Homem político -
Inexoravelmente, nossa morte.

( Hilda Hilst, em Poemas aos homens do nosso tempo)

*****

Poema do aviso final

É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
uma certeza
uma qualquer esperança.
É preciso que alguma coisa atraia
a vida
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
e abrirá caminhos.
É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade humana se afirmará
a machadadas.
( Torquato Neto em Torquatália: Do lado de dentro.

12/09/2018

"Eu sou o que eu escrevo"




A realidade fala. Todo o tempo, sem parar, sem me dar sossego. A realidade é uma voz que se espalha em torno de mim. É tagarela, insistente, incansável. Mais que uma voz: ela é um amontoado de letras, intransigentes, intragáveis, intoleráveis, que formam palavras atrás  de palavras e não me deixam descansar. Dizem, denunciam, acusam, protestam, elevam-se. A realidade fala e tem dito coisas terrí­veis. Ainda mais agora que encontro um espelho em Atiq Rahimi (foto), o escritor afegão nascido em Cabul em 1962, de quem leio A balada do Cálamo (Estação Liberdade).

A realidade anda difí­cil, mas o que a salva é a letra - é o sentido. A letra que é ela própria, num emaranhado de carne e espí­rito, de coração e invenção, de sopro e fala. Na página 98 do livro de Rahimi, encontro um capí­tulo decisivo, que resume tudo o que tento, de modo vacilante, dizer: "Não sou senão uma letra", o capítulo­ se chama. Trata-se de uma reflexão sobre o pertencimento. A quem devo minha vida? De onde venho? Onde exatamente estou? Para o escritor afegão, essas perguntas se resumem em uma só: "A que civilização eu pertenço?"

Sim, porque a civilização nada mais é que a letra feita carne. E a resposta que Rahimi nos oferece é ainda mais difí­cil, embora mais óbvia e também mais amorosa: "A todas, mas sobretudo àquela que me empresta suas letras". Ecoam as palavras de Pessoa: "Minha pátria é minha lí­ngua. Ou ao contrário? "Minha língua é minha pátria". Tudo se confunde e se alimenta; sem a lí­ngua não há pátria, não há fala, tampouco há o Ser; sem a lí­ngua, nada, infelizmente nada.

Resume o afegão: "O que quer que eu faça, aonde quer que eu vá, no que quer que eu me torne, eu sou o que eu escrevo, o que eu leio, o que eu vejo!" Eu sou o que eu escrevo, eu sou essas palavras mesmas que agora aqui anoto, isso - e nada mais - sou eu. Aqui eu me guardo, aqui guardo meu segredo mais antigo, aqui respiro." E não vejo senão letras, Rahimi conclui. Tudo é letra, tudo fala, tudo se articula e se expressa. Mesmo o silêncio é uma letra perdida, uma letra - em uma longa caravana de palavras - deixada, há muito, para trás.

Por isso, não adianta, é impossí­vel, não "ter posição". A letra sempre me dá uma posição, me dispõe de uma maneira, me exibe numa perspectiva, ela sempre me recorta e me faz falar. Não sei o que dizer, dizemos tantas vezes, no desespero ou no susto, mas mesmo assim já estamos dizendo. Lembra Rahimi de Roland Barthes, que afirmava sofrer de uma doença, uma terrí­vel doença, que assim resumia: "Ver por todos os lados a linguagem".Ver a linguagem é ouvi-la falar. Habitar a linguagem, como todos habitamos, é nela ocupar um lugar. Este, e não aquele. Assim, e não de outra maneira. Ser é estar: aqui, ali, acolá, muito longe, ou muito perto. Não há  escapatória.
É por isso que também Rahimi vê (como todos nós, se olharmos bem) letras por todos os lados. Letras nas rochas rebeldes das montanhas. Letras nas águas turvas, nas nuvens errantes, em cada gota de chuva. Ali onde menos se espera, esbarramos em uma letra e em uma direção. O mundo nos obriga a lê-lo todo o tempo. Somos, antes de tudo, leitores. E, ao ler, nos situamos. Antes mesmo de viver, ou "para viver", lemos. O olhar da mãe, os seios da mãe, a grande nuvem em torno: a letra está em todo lugar. Não há escapatótia.

Continua Rahimi: "Letras na pele da terra, em suas entranhas... Letras, letras, letras... Ainda somos essa criança que se assustou diante do mundo,desse mundo feito de letras, ainda que indecifráveis - sou eu também, somos todos nós. Sigo as palavras do afegão: "Sim, sou ainda esta criança, infans, que se põe repentinamente e com zelo a aprender, a falar, a ler, a escrever. Sou (somos) esse infante que balbucia, e é esse gaguejar, essa hesitação constante e atroz, que lhe dá acesso ao mundo e que o tornará homem. Sou aquele que sempre contempla as letras e brinca com elas.

Na infância, a letra é jogo -  é pura emoção. É uma dança, na qual nos engajamos para respirar e viver. Desde o primeiro "Ah! " que gritamos para mãe, até  o "Ah!" vacilante do último suspiro, a letra se embrenha por todos os lados. Acontece que o infante se recusa a se submeter Às  amarras da letra: gramáticas, morfologias, sintaxes, conjugações, nada disso o interessa. Ele quer a alegria da letra pura, a letra que é música e que não se deixa aprisionar em sentidos fixos. A letra da liberdade. Naquela dança de letras, todos nós nascemos.

Conclui Rahimi, assombrado com as próprias palavras: "Eu nasci do verbo. Religiosamente. Socialmente". Talvez por isso nos inquietemos com as pessoas que falam demais: elas sofrem da impressão de que as letras podem acabar e por isso devem ser ditas logo. Também por isso nos inquietamos com as pessoas que se recusam a falar: elas falam para dentro e simplesmente não nos deixam ouvir. Por isso “ no cotidiano, na polí­tica, na arte -  o mundo exige de nós que não deixemos de falar. Que não deixemos de ser. Que ocupemos um lugar no banquete da vida.

Não importa se falamos confusamente, ou com clareza; o que menos importa ése somos entendidos, ou não; aliás, o mal-entendido é, em nosso mundo áspero, a regra. Ele nos massacra. As letras são trocadas, amassadas, deturpadas, dizimadas - mas serão, sempre, letras a nos advertir e a nos ensinar. O verbo: estamos presos a ele, somos seus filhos. Mesmo em silêncio absoluto, nosso pensamento se agita e fala. Rahimi: "Por mais que eu tente escapar, dele não posso me desfazer".

Por isso -  atenção - é impossí­vel, é mesmo uma estupidez, desejar " não ter posição". Sempre, até fisicamente, em alguma posição estamos: sentados, ajoelhados, curvados, de pé, deitados, entortados. Seja como for, estamos em algum lugar e de algum jeito. A palavra é esse lugar. O verbo é uma grande manta sobre a qual rolamos, fugimos, nos encolhemos, mas sempre estamos.

"Eu retorno ao verbo, como para retornar ao meu paí­s de nascimento, Atiq Rahimi resume. Estamos sempre em posição de retorno. Tudo nos traz de volta ao verbo e  às palavras. Nunca escapamos. Prisioneiros da linguagem, é nela que conseguimos, também, nossa liberdade. Só existem homens livres porque existem grilhões a serem rasgados.



* José Castello é escritor, jornalista e crítico literário. É autor de, entre outros, Inventário das sombras


Extraído de  www.suplementopernambuco.com.br


07/09/2018

Discurso da Servidão voluntária




[.....]

Os próprios tiranos achavam estranho que os homens
pudessem suportar um homem que os maltratasse. Por isso se cobriam de bom grado com o manto da religião e, se possível, queriam tomar emprestada alguma amostra da divindade para manter sua vida malvada. Assim Salmoneu*, por ter zombado do povo querendo passar-se por Júpiter, encontra-se agora no fundo do inferno, segundo a sibila de Virgílio, que o viu

Sofrendo os tormentos, por querer imitar
os estrondos do Olimpo e os raios de Júpiter.
Puxado por quatro cavalos e agitando uma tocha,
atravessava os povos da Grécia e a cidade no centro da Élida.
Triunfante e pedindo para si as honras divinas.
Pobre louco, simulava os trovões e o raio inimitável
com a trompa de bronze e o tropel dos cascos dos cavalos.
Mas Júpiter lançou seu raio entre as nuvens densas,
não tochas nem as chamas fumegantes de um tição,
e o precipitou de cabeça no abismo profundo.
(Virgílio, Eneida, VI)

Se aquele que quis simplesmente fazer-se de tolo está sendo agora tão bem tratado, creio que aqueles
que abusaram da religião para fazer o mal se encontrarão em situação ainda pior.

Étienne de La Boétie - Sarlat (França), 1530-1563

* Segundo a mitologia grega, Salmoneu era filho de Éolo e irmão de Sísifo. Tentou igualar-se a Zeus, imitando seus raios. Quis que seus súditos lhe atribuíssem honras divinas e oferecessem sacrifícios.
Foi atirado no inferno por Zeus.

04/09/2018

Como pode...?




A minh'alma chorou tanto
que de pranto está vazia
não há pranto sem saudade
nem amor sem alegria
Como pode um peixe
vivo
viver fora da água fria?
(Domínio público)
*****

As coisas

as coisas não acontecem
como a gente quer
nem mesmo como
a gente não quer
as coisas nunca pedem
a nossa opinião


A solução

daqui a cem anos
todos os nossos problemas
nos terão resolvido

Horácio Dídimo - Fortaleza(CE) 1935-2018

*****

Tenho tudo
guardo sempre
vem o tempo
leva tudo
nada fica
a vida é ingrata
mas talvez seja eu a mais ingrata
gosto do meu tudo
me apego com carinho
assim é o tempo que passa
a vida segue trazendo na alma
a juventude perdida
que um dia não amei e nem zelei
hoje gosto do meu tudo
e guardo com carinho

Lindacy Meneses ex-diarista, moradora da favela
da Rocinha, zona sul do Rio de Janeiro.